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Editado por Harlequin Ibérica.

Uma divisão de HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2012 Brenda Joyce Dreams Unlimited, Inc.

© 2016 Harlequin Ibérica, uma divisão de HarperCollins Ibérica, S.A.

Engano e sedução, n.º 38 - Fevereiro 2016

Título original: Seduction

Publicado originalmente por HQN™ Books

 

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor, incluindo os de reprodução, total ou parcial. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Books S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, carateres, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos de negócios (comerciais), acontecimentos ou situações são pura coincidência.

® Harlequin, HQN e logótipo Harlequin são marcas registadas propriedades de Harlequin Enterprises Limited.

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Imagem de portada utilizada com a permissão de Harlequin Enterprises Limited. Todos os direitos estão reservados.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-7929-4

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Página de título

Créditos

Sumário

Dedicatória

Prólogo

Um

Dois

Três

Quatro

Cinco

Seis

Sete

Oito

Nove

Dez

Onze

Doze

Treze

Catorze

Quinze

Dezasseis

Dezassete

Nota da autora

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Para Sue e Laurent Teichman, com todo o meu amor e agradecimento.

Prólogo

 

1 de julho, 1793. Perto de Brest, França

 

– Estás vivo?

Aquela voz surpreendeu-o. Parecia longínqua. E, mesmo enquanto ouvia o inglês, a dor consumia-lhe as costas e os ombros, como unhas que se cravavam no corpo, como se estivessem a crucificá-lo. A dor era tão horrível que não conseguia falar, mas praguejou em silêncio. O que acontecera?

Estava a arder. Pior, questionava-se se estaria a sufocar. Mal conseguia respirar. Um peso terrível parecia estar a empurrá-lo para baixo. E estava completamente às escuras...

Mas a sua mente começava a funcionar. O homem que acabara de falar era inglês, mas isso era impossível. Onde estava? O que acontecera?

E as imagens começaram a passar à frente dos seus olhos a uma velocidade alarmante, acompanhadas por sons horríveis. Os gritos dos feridos e dos moribundos entre o ruído dos mosquetes e dos canhões, o rio que fluía de cor vermelha com o sangue francês de camponeses, monges, nobres e soldados...

Gemeu. Não conseguia recordar como o tinham ferido e tinha medo de estar a morrer. O que lhe acontecera?

Alguém falou e a voz pareceu-lhe familiar.

– Mal está vivo, Lucas. Perdeu muito sangue e está inconsciente desde a meia-noite. O meu cirurgião não sabe se sobreviverá.

– O que aconteceu? – perguntou outro inglês.

– Sofremos uma derrota terrível em Nantes, messieurs. Uma derrota dos franceses às ordens do general Biron, mas Dominic não foi ferido nessa batalha. Foi assaltado e agredido à frente dos meus aposentos ontem à noite.

E, então, apercebeu-se de que era o seu amigo, Michel Jacquelyn, que falava. Alguém tentara assassiná-lo, porque alguém sabia que era um espião.

– Meu Deus! – exclamou o segundo inglês.

Dominic conseguiu abrir os olhos com grande esforço. Estava deitado numa cama na praia, tapado com mantas. A espuma das ondas batia na margem e as estrelas brilhavam sobre a sua cabeça. Havia três homens à sua volta, vestidos com casacos, calças e botas. Tinha a visão imprecisa, mas conseguiu distingui-los com muita dificuldade. Michel era baixinho e moreno, tinha a roupa manchada de sangue e o cabelo apanhado numa trança. Os ingleses eram altos e loiros e tinham o cabelo solto. Estavam todos armados com pistolas e adagas. Ouviu o ranger dos mastros de madeira e o som do vento a bater nas velas. E já não conseguiu manter os olhos abertos. Cansado, fechou-os.

Ia perder os sentidos...

– Seguiram-te? – perguntou o tal Lucas.

– Não, mas a gendarmerie está por todo o lado, mes amis. Devemos apressar-nos. Os franceses bloqueiam a costa. Terão de ter cuidado para esquivar os seus barcos.

O outro inglês falou naquele momento e parecia alegre.

– Não temam. Ninguém consegue deixar a armada para trás como eu. Capitão Jack Greystone, monsieur, ao vosso serviço nesta noite tão interessante. E penso que já conhecem o meu irmão, Lucas.

– É verdade. Devem levá-lo para Londres, messieurs – indicou Michel. – Immédiatement.

– Não chegará vivo a Londres – declarou Jack.

– Vamos levá-lo para Greystone – decidiu Lucas. – É perto e é seguro. E, se tiver sorte, sobreviverá para poder lutar mais um dia.

– Muito bem. Mantenham-no a salvo. Na Vendeia, precisamos de o ter de volta. Que Deus vos acompanhe.

Um

 

2 de julho, 1793. Penzance, Cornualha

 

Estava atrasada.

Julianne Greystone saltou virtualmente da carroça depois de a parar à frente da chapelaria. A reunião da Sociedade era na porta do lado, no salão da pousada O Cervo Branco, mas todos os lugares à frente da pousada estavam ocupados. A pousada tinha sempre muito bulício à tarde. Voltou a verificar o travão da carroça, acariciou a velha égua e prendeu-a ao poste.

Odiava chegar atrasada. Não estava na sua natureza perder tempo. Julianne levava a vida muito a sério, ao contrário das outras damas que conhecia.

Essas mulheres desfrutavam da moda e das compras, do chá e das visitas sociais, dos bailes e dos jantares, mas não viviam nas mesmas circunstâncias que ela. Julianne não recordava um só momento na sua vida em que tivesse podido relaxar e mostrar-se frívola. O pai abandonara a família antes de ela fazer três anos, embora as suas circunstâncias já fossem difíceis nessa altura. O pai fora o mais novo dos irmãos, sem meios económicos, assim como um verdadeiro vagabundo. Ela crescera a fazer o tipo de tarefas na mansão que os seus semelhantes reservavam para os empregados. Cozinhar, lavar a loiça, levar a lenha, engomar as camisas dos irmãos, dar de comer aos dois cavalos, limpar os estábulos... Havia sempre uma tarefa à espera dela. Havia sempre alguma coisa para fazer. Mas não havia tempo suficiente num dia qualquer e era por isso que o atraso lhe parecia imperdoável.

Claro que havia uma hora de caminho desde a sua casa em Sennen Cove até à cidade. A irmã mais velha, Amelia, levara a carruagem naquele dia. Todas as quartas-feiras, chovesse ou fizesse sol, Amelia levava a mamã a visitar as vizinhas. Não importava que a mamã já não reconhecesse ninguém. A mamã não estava bem. Já não tinha a cabeça no sítio e, às vezes, não conseguia reconhecer as suas próprias filhas, mas adorava fazer visitas. Ninguém era tão adepto da frivolidade como a mamã. Às vezes, considerava-se uma debutante, rodeada pelas amigas e os pretendentes. Julianne pensava que sabia como a mãe se sentira ao crescer num lar com todos os luxos, antes de os americanos procurarem a sua independência, uma época com alguma guerra ocasional; uma época sem medo, sem rancor e sem revolução. Fora uma época de esplendor absoluto, de indiferença e de ostentação; uma época para desfrutar, uma época em que ninguém se incomodava em pensar na miséria do vizinho.

Pobre mamã! Começara a desvanecer pouco depois de o pai os abandonar pelo jogo e pelas mulheres desavergonhadas de Londres, Antuérpia e Paris. Mas Julianne não sabia se a mãe perdera a cabeça por causa de um coração partido. Às vezes, parecia-lhe mais simples e mundano. A mãe simplesmente não conseguia controlar as circunstâncias obscuras e ameaçadoras do mundo moderno.

Mas o seu médico dizia que era importante levá-la a passear. Todos na família estavam de acordo. Portanto, tinham-lhe deixado a carroça de dois cavalos e a égua de vinte anos. A hora de caminho transformara-se em duas horas.

Nunca se sentira tão impaciente. Vivia para as reuniões mensais em Penzance. Ela e o amigo, Tom Treyton, que era tão radical como ela, tinham fundado a sociedade no ano anterior, depois de o rei Luís XVI ter sido destronado e a França ter sido declarada uma república. Ambos tinham apoiado a revolução francesa desde que ficara claro que, naquele país, estavam a acontecer grandes mudanças, todas orientadas para facilitar a situação dos camponeses e da classe média, mas nenhum dos dois sonhara que o antigo regime poderia cair finalmente.

Todas as semanas aconteceria algo novo na cruzada de França pela liberdade dos pobres. No mês anterior, os líderes jacobinos na Assembleia Nacional tinham dado um golpe e tinham detido muitos da oposição. Desde aí, saíra uma nova constituição que outorgava o voto a todos os homens. Era quase demasiado bom para ser verdade. Recentemente, fora estabelecido o Comité para a Segurança Pública e Julianne estava ansiosa por saber que reformas proporia. E, além disso, havia as guerras no continente. A nova república francesa tencionava levar a liberdade a toda a Europa. A França declarara a guerra ao império dos Habsburgo em abril de noventa e dois. Mas nem todos partilhavam as ideias radicais de Julianne e de Tom, nem o seu entusiasmo pelo novo regime francês. No passado mês de fevereiro, a Grã-Bretanha juntara-se à Áustria e à Prússia e entrara em guerra contra a França.

– Menina Greystone...

Julianne quase chamara o rapaz uniformizado do outro lado da rua para lhe pedir para dar de beber à égua. Ao ouvir aquela voz estridente, ficou rígida e virou-se lentamente.

Richard Colmes observava-a com o sobrolho franzido.

– Não pode estacionar aqui.

Julianne sabia perfeitamente porque queria enfrentá-la. Afastou uma madeixa de cabelo loiro da cara e disse, educadamente:

– É uma rua pública, senhor Colmes. Ah, e boa tarde. Como está a senhora Colmes?

O chapeleiro era um homem baixinho e rechonchudo com cabelo grisalho. Não usava a peruca empoeirada, mas era de boa qualidade. De resto, a sua presença era impecável, desde as meias pálidas e sapatos de couro até ao casaco bordado.

– Não aprovarei a sua sociedade, menina Greystone.

Julianne sentia-se furiosa, mas sorriu com doçura.

– Não é a minha sociedade – indicou.

– Fundaram-na. Os radicais estão a condenar este grande país à ruína! – exclamou o chapeleiro. – São todos jacobinos e encontram-se para trocar as vossas ideias terríveis na porta do lado. Devia estar envergonhada, menina Greystone!

Já não tinha sentido continuar a sorrir.

– Este é um país livre, senhor, e todos temos o direito de ter as nossas próprias ideias. Podemos encontrar-nos na porta do lado se John Fowey nos permitir – Fowey era o hospedeiro.

– Fowey está tão louco como a menina! – gritou Colmes. – Estamos em guerra, menina Greystone, e o vosso grupo apoia o inimigo. Se atravessarem o canal, sem dúvida, receberão o exército francês com os braços abertos.

Julianne levantou a cabeça.

– Está a simplificar um assunto muito complexo, senhor. Defendo os direitos de todos os homens, mesmo os vagabundos que vêm a esta cidade à procura de alguma coisa para comer. Sim, apoio a revolução em França, mas também o fazem muitos dos nossos compatriotas! Apoio Thomas Paine, Charles Fox, lorde Byron e Shelley, para nomear apenas algumas das mentes distinguidas que reconhecem que as mudanças em França são pelo bem da humanidade. Sou uma radical, senhor, mas...

– É uma traidora, menina Greystone, e se não desviar a sua carroça, terei de o fazer por si – virou-se, entrou na sua loja e fechou a porta com força.

Julianne tremeu e sentiu um nó no estômago. Estivera prestes a dizer ao chapeleiro que adorava o seu país. Podia ser patriota e, mesmo assim, apoiar a nova república constitucional em França. Podia ser patriota e, mesmo assim, advogar por uma reforma política e uma mudança social, tanto no estrangeiro como no seu próprio país.

– Vamos, Milly – disse à égua. Conduziu o animal e a carruagem para o estábulo situado do outro lado da rua. Com cada semana que passava era mais difícil relacionar-se com os seus vizinhos, pessoas que sempre conhecera. Houvera um tempo em que todos a recebiam nas lojas e nos salões com os braços abertos. Já não era assim.

A revolução em França e as guerras posteriores no continente tinham dividido o país.

E, agora, teria de pagar pelo privilégio de deixar a égua no estábulo, quando não tinham dinheiro. As guerras tinham aumentado o preço da comida, já para não falar de quase todos os outros gastos. Greystone tinha uma mina de chumbo próspera e uma pedreira de ferro igualmente produtiva, mas Lucas investia quase todos os lucros da quinta, a pensar no futuro de toda a família. Era frugal, mas todos eram. Exceto Jack, que se mostrava imprudente em todos os sentidos e, provavelmente, era por isso que era tão dado ao contrabando. Lucas estava em Londres ou, pelo menos, era o que pensava, embora fosse suspeito. Parecia estar sempre na cidade. E, quanto a Jack, conhecendo o irmão, provavelmente, estava no mar, a fugir de algum agente da alfândega.

Ignorou as suas preocupações com o gasto inesperado, pois não podia evitar pagar, e deixou para trás a conversa desagradável com o chapeleiro, embora tencionasse contar à irmã mais tarde.

Sacudiu o pó do nariz e da saia de musselina. Não chovera durante a semana e os caminhos estavam incrivelmente secos. Agora, o seu vestido era bege em vez de cor de marfim.

À medida que se aproximava do cartaz situado junto da porta de entrada da pousada, começava a entusiasmar-se mais. Ela própria pintara o cartaz.

Sociedade dos Amigos do Povo, dizia. Recém-chegados sejam bem-vindos. Sem cotas.

Estava muito orgulhosa dessa última frase. Enfrentara o seu querido amigo Tom Treyton com unhas e dentes para não cobrar cotas aos membros. Não era isso que Thomas Hardy fazia para as Sociedades Correspondentes? Qualquer homem e mulher devia poder participar numa assembleia destinada a promover a igualdade, a liberdade e os direitos do homem. Não deviam negar a ninguém o direito nem a capacidade de participar numa causa que os libertaria apenas porque não podiam permitir-se pagar uma cota mensal.

Julianne entrou no salão da pousada e viu Tom imediatamente. Tinha mais ou menos a sua altura, com o cabelo castanho claro e feições agradáveis. O pai era um latifundiário acomodado e Tom fora enviado para Oxford para estudar na universidade. Julianne pensara que viveria em Londres depois de se graduar. Em vez disso, voltara a casa para fundar o seu próprio escritório de advogados na cidade. Quase todos os seus clientes eram contrabandistas que tinham sido capturados. Infelizmente, não conseguira defender os seus dois últimos clientes com êxito. Ambos tinham sido condenados a dois anos de trabalhos forçados. Era óbvio, eram culpados das acusações e todos sabiam.

Tom estava de pé no centro da sala, enquanto todos os outros estavam sentados às mesas. Julianne percebeu imediatamente que a assistência voltara a baixar, mesmo mais do que da última vez. Havia apenas duas dúzias de homens na reunião, todos eles mineiros, pescadores e contrabandistas. Desde que a Grã-Bretanha entrara na coligação contra a França na guerra, produzira-se um ressurgimento do patriotismo na zona. Os homens que tinham apoiado a revolução encontravam agora Deus e o seu país. Julianne supunha que dita mudança de alianças era inevitável.

Tom vira-a. A sua cara iluminou-se enquanto corria para ela.

– Estás muito atrasada! Temia que te tivesse acontecido alguma coisa e que não conseguisses chegar à nossa assembleia.

– Tive de trazer Milly e foi uma viagem muito lenta – baixou o tom de voz. – O senhor Colmes não me deixava estacionar à frente da loja dele.

Os olhos azuis de Tom acenderam-se.

– Maldito canalha reacionário!

Tocou-lhe no braço.

– Está assustado, Tom. Todos estão. E não compreende o que está a acontecer em França.

– Tem medo de que lhe tiremos a loja e a casa e as entreguemos ao povo. E talvez devesse ter medo – declarou Tom.

Tinham estado em desacordo sobre o método e os meios de reforma durante o último ano, desde que tinham formado a sociedade.

– Não podemos andar por aí a tirar as posses aos cidadãos de alto estatuto como Richard Colmes – indicou, suavemente.

Tom suspirou.

– Estou a ser muito radical, é óbvio, mas não me importaria de tirar as posses ao conde de Penrose e ao barão de St. Just.

Julianne sabia que falava a sério. Sorriu.

– Podemos debatê-lo noutro momento?

– Sei que concordas que os ricos têm muito e simplesmente porque herdaram as terras e os títulos – queixou-se.

– Estou de acordo, mas também sabes que não aprovo o roubo maciço à aristocracia. Quero saber em que debate me meti. O que aconteceu? Quais são as últimas notícias?

– Devias juntar-te aos reformistas, Julianne. Não és tão radical como gostas de pensar – queixou-se o seu amigo. – Houve uma derrota. Os monárquicos da Vendeia foram derrotados em Nantes.

– Isso é maravilhoso – declarou Julianne, quase incrédula. – A última coisa que soubemos foi que esses monárquicos nos tinham vencido e que tinham tomado a zona ao longo do rio em Saumur.

As vitórias dos revolucionários franceses dentro de França não estavam asseguradas e havia oposição interna ao longo do país. A primavera passada começara uma forte rebelião monárquica na Vendeia.

– Eu sei. E é um grande golpe de sorte – Tom sorriu e agarrou-a pelo braço. – Com sorte, os malditos rebeldes de Toulon, Lyon, Marselha e Bordéus cairão em breve. E também os da Bretanha.

Entreolharam-se. O alcance da oposição interna à revolução era alarmante.

– Devia escrever aos nossos amigos em Paris imediatamente – decidiu Julianne. Uma das metas das Sociedades Correspondentes era manter o contacto com os clubes jacobinos de França e mostrar-lhes o seu apoio na revolução. – Talvez haja algo mais que possamos fazer aqui na Grã-Bretanha, para além de nos reunirmos e discutirmos sobre os últimos acontecimentos.

– Podias ir a Londres e infiltrar-te nos círculos conservadores – sugeriu Tom. – O teu irmão é conservador. Finge ser um simples mineiro da Cornualha, mas Lucas é o bisneto de um barão. Tem muitos contactos.

Julianne sentiu medo.

– Lucas é apenas um simples patriota – declarou.

– É um conservador e um tory – indicou Tom, com firmeza. – Conhece homens poderosos, homens com informação, homens próximos de Pitt e Windham. Tenho a certeza disso.

Ela cruzou os braços e ficou à defesa.

– Tem o direito de ter as suas próprias opiniões, mesmo que sejam contrárias às nossas ideias.

– Eu não disse que não tem. Só digo que tem contactos. Mais do que pensas.

– Estás a sugerir que vá a Londres e espie o meu irmão e os amigos?

– Eu não disse isso, mas é uma boa ideia – declarou Tom, com um sorriso. – Podias ir a Londres no mês que vem, dado que não podes assistir à convenção em Edimburgo.

Thomas Hardy organizara uma convenção de Sociedades Correspondentes e quase todas as sociedades do país iam enviar delegados a Edimburgo. Tom representaria a sua sociedade. Mas desde que a Grã-Bretanha entrara em guerra contra a França no continente, as coisas tinham mudado. Já não olhavam para os radicais e para os seus clubes com condescendência. Falava-se de repressão governamental. Todos sabiam que o primeiro-ministro não tolerava os radicais, tal como muitos outros ministros, e o mesmo acontecia com o rei Jorge.

Estava na hora de enviar uma mensagem a todo o governo britânico e, sobretudo, ao primeiro-ministro Pitt: não se deixariam reprimir pelo governo, nunca. Continuariam a promover e a apoiar os direitos do homem, assim como a revolução em França. Continuariam a opor-se à guerra contra a nova república francesa.

Organizara-se outra convenção mais pequena em Londres, à frente de Whitehall. Julianne esperava poder ir, mas uma viagem a Londres era custosa. No entanto, o que é que Tom estava a sugerir realmente?

– Não tenciono espiar o meu irmão, Tom. Espero que estivesses a brincar.

– Estava – assegurou ele, mas Julianne continuava incrédula. – Ia escrever aos nossos amigos em Paris, mas porque não o fazes? – acariciou-lhe o queixo. – Tens mais jeito para as palavras do que eu.

Julianne sorriu, com a esperança de que não lhe tivesse pedido para espiar Lucas, que não era um tory e, certamente, não estava envolvido na guerra.

– Sim, é assim – acedeu.

– Vamos sentar-nos. Ainda temos uma hora de discussão pela frente – replicou Tom, guiando-a para um banco.

Durante a hora seguinte, falaram sobre os acontecimentos recentes em França, sobre as moções na Câmara dos Comuns e na dos Lordes e sobre os últimos mexericos políticos em Londres. Quando terminou a reunião, eram quase cinco da tarde. Tom acompanhou-a à rua.

– Sei que é cedo, mas podes jantar comigo?

Ela hesitou por um instante. Tinham jantado juntos no mês anterior depois de uma reunião da sociedade. Mas quando Tom se oferecera para a ajudar a entrar na sua carruagem, agarrara-a e olhara para ela como se desejasse beijá-la.

Julianne não soubera o que fazer. Já a beijara uma vez antes e fora agradável, mas não apaixonado. Adorava-o, mas não estava interessada em beijá-lo. Mesmo assim, estava bastante certa de que Tom estava apaixonado por ela e tinham tanto em comum que desejava apaixonar-se por ele. Era um bom homem e um grande amigo.

Conhecia-o desde a infância, mas só se tinham tornado amigos verdadeiros há dois anos, ao encontrar-se na reunião de Falmouth. Esse fora o início da sua amizade. Mas Julianne tinha a certeza de que os seus sentimentos eram mais fraternais e platónicos do que românticos.

Mesmo assim, jantar com Tom era muito agradável. Tinham sempre conversas estimulantes. Julianne estava prestes a aceitar o seu convite quando viu um homem a cavalo a subir pela rua.

– É Lucas? – perguntou Tom, tão surpreendido como ela.

– Muito provavelmente – replicou Julianne e começou a sorrir. Lucas era sete anos mais velho do que ela, tinha vinte e oito anos. Era um homem alto e musculado com umas feições cinzeladas de maneira clássica, olhos cinzentos e penetrantes e cabelo loiro. As mulheres tentavam captar a sua atenção incessantemente, mas, ao contrário de Jack, que se declarava um canalha, Lucas era um cavalheiro. Era um homem de grande disciplina, empenhado em manter a família e as suas terras.

Lucas fora mais uma figura paterna para ela do que um irmão e Julianne respeitava-o, admirava-o e amava-o muito.

Lucas parou o seu cavalo à frente dela e, ao vê-lo, o sorriso de Julianne desapareceu. Lucas parecia sombrio. De repente, pensou no cartaz atrás das suas costas, que dava as boas-vindas aos recém-chegados à sua reunião, e desejou que não o visse.

Vestido com um casaco castanho, um colete bordô, uma camisa verde e umas calças claras, Lucas saltou do cavalo para o chão. Não usava peruca e tinha o cabelo para trás.

– Olá, Tom! – apertou a mão a Tom sem sorrir. – Vejo que continuas a defender a rebelião.

O sorriso de Tom desapareceu.

– Isso não é justo, Lucas.

– A guerra nunca é justa – olhou para a irmã.

Passara anos a desaprovar as suas ideias e deixara-o muito claro quando a França lhes declarara guerra. Ela sorriu, hesitante.

– Não te esperávamos.

– Obviamente. Vim a galopar desde Greystone, Julianne – havia um certo tom de aviso na sua voz. Lucas tinha um temperamento feroz quando o provocavam. Julianne via que estava muito zangado.

Ficou tensa.

– Deduzo que estavas à minha procura? Trata-se de uma emergência? – sentiu um aperto no coração. – É a mamã? Apanharam Jack?

– A mamã está bem. Jack também. Eu gostaria de falar em privado contigo e não posso esperar.

– Jantarás comigo noutra ocasião, Julianne? – perguntou Tom.

– É óbvio – assegurou ela. Tom fez uma reverência a Lucas, que não se mexeu. Quando o seu amigo se foi embora, ela olhou para o irmão, completamente perplexa. – Estás zangado comigo?

– Não conseguia acreditar quando Billy me disse que tinhas vindo à cidade para assistir a uma reunião. Soube logo a que se referia – acusou, referindo-se ao rapaz que aparecia diariamente para ajudar com os cavalos. – Já falámos disto muitas vezes e recentemente, desde a proclamação do rei em maio.

Ela cruzou os braços.

– Sim, falámos da nossa diferença de opiniões. E sabes que não tens o direito de me impor as tuas ideias tory.

Lucas ficou vermelho, sabendo que a irmã tencionava insultá-lo.

– Não desejo mudar o que pensas – defendeu-se. – Mas tenciono proteger-te de ti própria. Meu Deus! A proclamação de maio proíbe explicitamente as reuniões sediciosas, Julianne. Uma coisa foi embarcar em tais atividades antes da proclamação, mas não podes continuar a fazê-lo agora.

De certo modo tinha razão, pensava Julianne, e sabia que fora infantil chamar-lhe «tory».

– Porque presumes que as nossas reuniões são sediciosas?

– Porque te conheço! – exclamou Lucas. – Defender os direitos de todos os homens é uma causa maravilhosa, Julianne, mas estamos em guerra e apoias o governo contra o qual lutamos. Isso é rebelião e até poderia considerar-se traição. Graças a Deus que estamos em St. Just, onde ninguém se importa com os nossos assuntos e longe dos agentes da alfândega.

Ela tremeu, pensando na conversa horrível com o chapeleiro.

– Reunimo-nos para falar dos acontecimentos da guerra e dos acontecimentos em França e para difundir as ideias de Thomas Paine. Isso é tudo – mas sabia que, se o governo alguma vez se incomodasse em investigar o seu pequeno clube, os acusaria a todos de rebelião. Claro que Whitehall nem sequer sabia da sua existência.

– Escreves para esse maldito clube de Paris e não o negues. Amelia contou-me.

Julianne não conseguia acreditar que a irmã traíra a sua confiança.

– Confiei nela!

– Ela também quer proteger-te de ti própria. Deves deixar de assistir a estas reuniões. E também deves abandonar a correspondência com esse maldito clube jacobino em França. Esta guerra é um assunto muito sério e perigoso, Julianne. Os homens morrem todos os dias e não só nos campos de batalha de Flandres e do Reno. Morrem nas ruas de Paris e nos vinhedos no campo. Ouvi coisas em Londres. Não tolerarão a rebelião durante muito mais tempo, não enquanto os nossos homens continuarem a morrer no continente, não enquanto os nossos amigos fugirem de França em massa.

– São os teus amigos, não os meus – e assim que falou, não pôde acreditar no que acabara de dizer.

Lucas corou.

– Nunca virarias as costas a um ser humano que precisa de ajuda, nem sequer a um francês aristocrata.

Tinha razão.

– Lamento, Lucas, mas não podes dar-me ordens como Jack faz com os seus marinheiros.

– Oh, posso, sim! És a minha irmã. Tens vinte e um anos. Estás debaixo do meu teto e ao meu cuidado. Eu sou o chefe da família. Farás o que te disser por uma vez na tua vida.

Julianne não sabia o que fazer. Devia continuar e desafiá-lo abertamente? O que poderia fazer? Nunca a repudiaria nem a obrigaria a ir-se embora de Greystone.

– Estás a pensar em desafiar-me? – perguntou Lucas, sem acreditar. – Depois de tudo o que fiz por ti, tudo o que prometi fazer por ti.

Ela corou. Qualquer outro tutor tê-la-ia obrigado a casar-se. Lucas não era romântico, mas parecia desejar que encontrasse um pretendente que pudesse agradar-lhe. Uma vez, dissera-lhe que não conseguia imaginá-la presa a um latifundiário velho que desprezasse o discurso político. Em vez disso, queria juntá-la com alguém que apreciasse as suas opiniões tresloucadas e o seu caráter pouco comum, não que a castigasse por isso.

– Não posso mudar os meus princípios – declarou ela, finalmente. – Mesmo que sejas um irmão maravilhoso, o irmão mais maravilhoso que possa imaginar.

– Agora, não tentes adular-me! Não estou a pedir-te para mudares os teus princípios. Estou a pedir-te para seres discreta, para agires com cautela e com bom senso. Peço-te que desistas destas associações radicais enquanto estivermos em guerra.

Julianne tinha a obrigação moral de obedecer ao irmão, mas não sabia se seria capaz de fazer o que acabara de lhe pedir.

– Estás a pôr-me numa situação terrível – queixou-se.

– Ainda bem – respondeu ele. – Mas não atravessei o distrito a cavalo para te dizer isso. Temos um convidado em Greystone.

De repente, todos os pensamentos sobre as reuniões radicais desapareceram. Em circunstâncias normais, Julianne ter-se-ia sentido alarmada pela presença de um convidado inesperado. Não esperavam Lucas, muito menos um convidado. Tinham apenas uma garrafa de vinho em casa. O quarto de convidados estava por preparar. A sala não estava limpa. O salão principal também não. Os armários não tinham provisões suficientes para fazer um jantar. Mas a expressão de Luke era tão funesta que não achou que devesse preocupar-se com limpar a casa ou encher a despensa.

– Lucas?

– Jack levou-o para casa há umas horas – mostrava-se sombrio. Virou-se para agarrar as rédeas do seu cavalo. – Não sei quem é – declarou, de costas para ela. – Suponho que será um contrabandista. Em qualquer caso, preciso de ti em casa. Jack já se foi embora à procura de um cirurgião. Devemos tentar fazer com que o pobre homem esteja confortável, porque está às portas da morte.

 

 

Greystone erguia-se ao longe. Era uma mansão com duzentos e cinquenta anos de antiguidade. Situada no topo de uns escarpados e sem árvores, à frente de páramos ermos e sem cor, rodeada apenas do céu cinzento, parecia inóspita e lúgubre.

A baía Sennen encontrava-se por baixo. As histórias sobre as aventuras, maldades e vitórias dos contrabandistas e agentes da alfândega eram em parte mito e em parte realidade. Durante gerações, a família Greystone fizera contrabando com os melhores. A família olhara para outro lado enquanto os amigos e vizinhos enchiam a baía de caixas ilegais de uísque, tabaco e chá, fingindo não saber nada sobre qualquer atividade ilegal. Havia noites em que o agente da alfândega destacado em Penzance jantava na mansão com a sua esposa e as suas filhas e bebia um dos melhores vinhos franceses que existiam enquanto partilhava mexericos com os seus anfitriões como se fossem os seus melhores amigos. Outras vezes, acendiam as candeias para avisar os contrabandistas de que as autoridades estavam a caminho. O barco de Jack estava ali ancorado e, na baía, todos se apressavam a esconder as caixas nas grutas dos escarpados enquanto Jack e os seus homens fugiam e as autoridades britânicas desciam pelos escarpados a pé, disparando para qualquer pessoa que tivesse ficado para trás.

Julianne presenciara aquilo desde que era uma menina pequena. Ninguém no distrito considerava o contrabando um crime. Era uma forma de vida.

Doíam-lhe as pernas terrivelmente. Também as costas. Raramente montava de lado, à inglesa, a única opção que lhe restava com o seu vestido de musselina. Manter o equilíbrio sobre o cavalo alugado não fora uma tarefa fácil. Lucas olhara para ela com preocupação várias vezes ao longo do caminho e oferecera-se para parar em diversas ocasiões para que pudesse descansar. Temendo que Amelia se entretivesse com os vizinhos e que o desconhecido moribundo estivesse sozinho na mansão, Julianne recusara-se.

A primeira coisa que viu quando Lucas e ela se aproximaram da casa foi os dois cavalos da carruagem atrás do estábulo de pedra. Amelia já estava em casa.

Desmontaram apressadamente e Lucas tomou as suas rédeas.

– Eu tomo conta dos cavalos – disse-lhe, com um sorriso. – Amanhã, terás dores.

– Já tenho.

Lucas conduziu os dois cavalos para o estábulo.

Julianne levantou a saia e correu para a mansão. A casa era um retângulo simples, mais longa do que alta ou larga, com três andares. O andar mais alto continha águas-furtadas e, noutra época, aposentos para os empregados que já não tinham. O salão principal conservava a sua forma original. Era uma sala enorme que anteriormente se usava para jantares e festas. O chão era de pedra cinzento-escura e as paredes eram numa versão mais clara da mesma pedra. Dois retratos ancestrais e algumas espadas antigas decoravam as paredes. Num extremo do salão havia uma grande lareira e duas poltronas majestosas bordô. O teto era de madeira.

Julianne atravessou o salão, a biblioteca e a sala de jantar a correr. Começou a subir as escadas.

Amelia descia naquele momento. Trazia um pano húmido e um jarro. Ambas pararam ao ver-se.

– Está bem? – perguntou Julianne.

Amelia era baixa e Julianne era alta. Tinha o cabelo loiro apanhado e a sua expressão era séria como sempre, mas o seu rosto iluminou-se, aliviado.

– Graças a Deus que estás em casa! Sabes que Jack deixou um homem moribundo aqui?

– É tão típico de Jack! – exclamou Julianne. É óbvio, Jack já se fora embora. – Lucas disse-me. Está lá fora com os cavalos. O que posso fazer?

Amelia virou-se abruptamente e guiou-a pela escada. Percorreu apressadamente o corredor, que estava escuro e cheio de retratos familiares que datavam de há duzentos anos. Lucas apropriara-se da suíte principal há muito tempo e Jack tinha o seu próprio quarto, mas Amelia e ela partilhavam um quarto. Nenhuma das duas se importava, pois só usavam o quarto para dormir. Mas o único quarto de convidados nunca era usado. Não era frequente ter convidados em Greystone.

Amelia deteve-se à frente da porta aberta do quarto de convidados e olhou para ela.

– O doutor Eakins acabou de se ir embora.

O quarto de convidados dava para as praias rochosas da baía e para o oceano Atlântico. O sol estava a pôr-se e enchia o quarto de luz. Albergava uma cama pequena, uma mesa com duas cadeiras, uma cómoda e um aparador. Julianne reparou imediatamente no homem que havia na cama.

O coração acelerou.

O homem moribundo estava sem camisa e tinha o lençol à volta das ancas. Julianne não queria ficar a olhar, mas, deitado como estava, não deixava muito à imaginação. Era um homem grande, moreno e musculado. Ficou a olhar para ele durante mais uns segundos, pouco habituada a ver o peito nu de um homem e muito menos de um homem com um físico tão poderoso.

– Há um minuto, estava de barriga para baixo. Deve ter-se virado quando me fui embora – informou Amelia. – Deram-lhe um tiro nas costas. O doutor Eakins disse que perdeu muito sangue. Dói-lhe muito.

Julianne reparou que as suas calças estavam manchadas de sangue e lama. Questionou-se se as manchas de sangue seriam da sua ferida ou da de outra pessoa. Não queria olhar para as suas ancas ou para as suas coxas, portanto, olhou para a cara dele.

O coração estava acelerado. O seu convidado era um homem muito bonito de pele morena e cabelo preto, com as maçãs do rosto marcadas e um nariz reto. As suas pestanas eram espessas e pretas.

Julianne desviou o olhar. O coração acelerara, o que era absurdo.

Amelia entregou-lhe o pano húmido e o jarro e correu para a cama. Julianne conseguiu levantar o olhar, consciente de que estava corada.

– Respira? – perguntou.

– Não sei – respondeu Amelia, tocando-lhe na testa. – Para piorar as coisas, tem uma infeção, porque não lhe curaram a ferida corretamente. O doutor Eakins não se mostrou otimista – virou-se. – Vou pedir a Billy para ir buscar água do mar.

– Devia trazer um balde cheio – avisou Julianne. – Eu ficarei com ele.

– Quando Lucas vier, podemos deitá-lo de barriga para baixo outra vez – acrescentou Amelia, enquanto saía do quarto.

Julianne hesitou, ficou a olhar para o desconhecido e beliscou-se. O pobre homem estava a morrer e precisava da sua ajuda.

Deixou o jarro e o pano na mesa e aproximou-se. Com muito cuidado, sentou-se junto dele e o coração acelerou novamente. O seu peito não se mexia. Aproximou a face da sua boca e demorou uns segundos a sentir o seu fôlego. Graças a Deus que estava vivo.

Pour la victoire.

Julianne endireitou-se como se lhe tivessem dado um tiro. Olhou para ele na cara. Continuava com os olhos fechados, mas acabara de falar, em francês, com o sotaque de um francês. Tinha a certeza de que dissera: «Pela vitória.»

Era um grito de guerra comum entre os revolucionários franceses, mas aquele homem parecia um nobre, com as suas feições patrícias. Olhou para as mãos dele. Os nobres tinham as mãos suaves como a pele de um bebé. Tinha os nódulos a sangrar e as palmas cheias de calos.

Julianne mordeu o lábio. Estar tão perto fazia com que se sentisse muito consciente dele. Talvez fosse por causa da sua nudez ou da sua masculinidade. Respirou fundo com a esperança de aliviar parte da tensão.

Monsieur? Êtes-vous français?

Não se mexeu.

– Está acordado? – perguntou Lucas.

Julianne virou-se e viu o seu irmão a entrar no quarto.

– Não. Mas acabou de falar em sonhos. Falou em francês, Lucas.

– Não está a dormir. Está inconsciente. Amelia disse-me que tem febre.

Julianne hesitou, antes de se atrever a pôr-lhe uma mão na testa.

– Está a arder, Lucas.

– Podes tomar conta dele, Julianne?

Olhou para o irmão, questionando-se se a sua voz parecera estranha.

– Claro que posso. Vamos mantê-lo embrulhado em panos húmidos. Tens a certeza de que Jack não disse nada sobre a sua identidade? É francês?

– Jack não sabe quem é – declarou Lucas, com firmeza. – Quero ficar, mas tenho de voltar a Londres amanhã.

– Passa-se alguma coisa?

– Vou analisar um novo contrato para o nosso ferro. Mas não sei se gosto da ideia de vos deixar a sós com ele – voltou a olhar para o convidado.

Julianne ficou a olhar para ele até Lucas a observar. Quando decidia mostrar-se impassível, era impossível saber o que estava a pensar.

– Não acreditarás que pode ser perigoso...

– Não sei no que acreditar.

Julianne assentiu e virou-se para o desconhecido. Havia algo estranho naquela situação. De repente, questionou-se se o irmão saberia quem era o convidado, mas não queria dizer-lhe. Virou-se para olhar para ele, mas Lucas já se fora embora.

Não havia nenhuma razão lógica para que pudesse querer esconder-lhe a informação. Se soubesse quem era aquele homem, sem dúvida, dir-lhe-ia. Obviamente estava enganada.

Ficou a olhar para o desconhecido, frustrada por não poder ajudá-lo. Afastou-lhe uma madeixa de cabelo da cara. Ao fazê-lo, o homem retorceu-se de repente e bateu-lhe na coxa com o braço. Julianne levantou-se, alarmada, quando ele gritou:

Où est-elle? Qui est responsable? Qu’est il arrivé?

«Onde está ela? Quem fez isto?», traduziu Julianne mentalmente. O desconhecido voltou a agitar-se com mais força e ela teve medo de que pudesse magoar-se. De repente, gemeu de dor.

Julianne voltou a sentar-se na cama, junto da sua anca, e acariciou-lhe o ombro.

Monsieur, je m’appelle Julianne. Il faut que vous reposiez maintenant.

Respirava com dificuldade, mas não se mexia e estava mais quente do que antes. Embora devesse ser a sua imaginação. E, então, começou a falar.

Por um instante, pensou que estava a tentar falar com ela. Mas falava tão rapidamente e com tanta fúria que Julianne se apercebeu de que estava a delirar.

– Por favor – pediu, suavemente, e decidiu falar apenas em francês. – Tem febre. Por favor, não tente falar.

Non! Nous ne pouvons pas nous retirer! – era difícil entendê-lo, mas Julianne esforçou-se para encontrar sentido às suas palavras aceleradas. «Não podemos retirar-nos», dissera. Já não restava dúvida de que era francês. Nenhum inglês podia ter um sotaque tão perfeito. Nenhum inglês falaria numa segunda língua enquanto delirava.

Julianne inclinou-se junto dele para tentar entendê-lo. Mexia-se violentamente, tanto que acabou por se virar sem parar de gritar. Praguejou entre lamentos. Não podiam retirar-se. Estaria a falar de uma batalha? Disse que muitos tinham morrido, mas que tinham de se manter no sítio. Pela liberdade!

Julianne agarrou-o pelo ombro e sentiu as lágrimas nos olhos. Provavelmente, estaria a reviver uma batalha terrível que os seus homens e ele estavam a perder. Seria um oficial do exército francês?

Pour la liberté! – gritou ele. – Continuem, continuem!

Julianne acariciou-lhe o ombro, tentando oferecer-lhe consolo.

O rio estava cheio de sangue... Muitos homens tinham morrido... o sacerdote morrera... tinham de se retirar. O dia estava perdido!

O homem começou a chorar.

Julianne não sabia o que fazer. Nunca vira um homem adulto a chorar.

– Está a delirar, monsieur – disse-lhe. – Mas está a salvo comigo.

Estava a ofegar, com as faces húmidas por causa das lágrimas e o peito encharcado de suor.

– Lamento muito que tenha sofrido – replicou. – Não estamos no campo de batalha. Estamos na minha casa, na Grã-Bretanha. Aqui, estará a salvo, mesmo que seja um jacobino. Vou escondê-lo e protegê-lo. Prometo-lhe!

De repente, pareceu relaxar e Julianne questionou-se se teria adormecido.

Respirou fundo. Era um oficial do exército francês, tinha a certeza. Talvez até fosse nobre. Membros da nobreza francesa tinham apoiado a revolução e apoiavam a república. Sofrera uma grande derrota em que muitos dos seus homens tinham morrido e isso atormentava-o. Julianne sofria por ele. Mas como é que Jack o teria encontrado? Jack não apoiava a revolução e, mesmo assim, também não era um patriota britânico. Numa ocasião, dissera-lhe que a guerra lhe dava jeito. O contrabando era mais rentável do que antes da revolução.

O desconhecido estava a arder. Acariciou-lhe a testa e, de repente, sentiu-se furiosa. Onde estava Amelia? Onde estava a água do mar?

– Está a arder, monsieur – declarou Julianne, em francês. – Tem de ficar em repouso para recuperar.

Tinham de lhe baixar a febre. Voltou a humedecer-lhe o pano e, daquela vez, passou-lho pelo pescoço e pelos ombros. Depois, deixou-o lá e humedeceu outro.

– Pelo menos, agora, está a descansar – replicou, suavemente. Então, apercebeu-se de que passara para o inglês. Repetiu o mesmo em francês enquanto deslizava o pano pelo seu peito. E o coração acelerou.

Acabara de deixar o pano húmido sobre o seu peito, onde tencionava deixá-lo, quando lhe agarrou o pulso com violência. Ela gritou, assustada, e olhou para ele na cara.

Os seus olhos verdes brilhavam com fúria.

Êtes-vous reveillé? – «está acordado?».

Ele não a soltou, mas afrouxou a força.

– Nadine? – sussurrou.

Quem era Nadine? Seria a sua apaixonada ou a sua esposa. Era difícil de falar. Humedeceu os lábios.

Monsieur, foi ferido numa batalha. Eu sou Julianne. Estou aqui para o ajudar.

O seu olhar era febril, não lúcido. E, de repente, agarrou-a pelo ombro sem lhe soltar o pulso.

Fez um ar de dor, mas não deixou de olhar para ela.

Sorriu lentamente.

– Nadine – deslizou a sua mão forte e poderosa pelo ombro até chegar à nuca. Antes de ela conseguir protestar ou perguntar o que estava a fazer, começou a puxá-la.

Alarmada, Julianne apercebeu-se de que tencionava beijá-la.

O seu sorriso era sedutor, seguro e prometedor. E, de repente, os seus lábios encontraram-se.

Julianne ofegou, mas não tentou afastar-se dele. Em vez disso, ficou quieta e deu-lhe total liberdade enquanto o seu corpo aquecia com o desejo.

Era um desejo que nunca antes experimentara.

Então, apercebeu-se de que deixara de a beijar. Ela ofegava contra a sua boca. Sentia-se plenamente consciente do fogo que percorria o seu próprio corpo. Demorou uns segundos a aperceber-se de que estava inconsciente novamente.

Levantou-se, assustada. Beijara-a! Tinha febre e delirava. Nem sequer sabia o que estava a fazer!

Importava?

Beijara-a e ela respondera de uma maneira que nunca teria achado possível.

E, além disso, era um oficial do exército francês e um herói revolucionário.

Ficou a olhar para ele.

– Seja quem for, não vai morrer. Não o permitirei – prometeu.

Estava tão quieto que poderia ser um cadáver.