Editado por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

© 2008 Gena Showalter. Todos os direitos reservados.

O BEIJO MAIS ESCURO, Nº 21 - Avril 2012

Título original: The Darkest Kiss

Publicada originalmente por HQN™ Books.

Publicado em português em 2010

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin, logotipo Harlequin e Romantic Stars são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

I.S.B.N.: 978-84-687-0266-7

Editor responsável: Luis Pugni

ePub: Publidisa

Prólogo

Era conhecido como o Escuro, Malach Ha-Maet, Yama, Azrael, Shadow Walker, Mairya, Rei dos Mortos… Era todas essas coisas e mais, porque era um Senhor do Submundo.

Há muito tempo, abrira a dimOuniak, uma caixa poderosa feita dos ossos de uma deusa, e libertara uma horda de demónios na Terra. Em forma de castigo, tanto ele como os guerreiros que o tinham ajudado foram obrigados a albergar os demónios no seu interior, unindo a luz e a escuridão, a ordem e o caos, enquanto os espíritos ferozes não fossem capazes de dominar os guerreiros disciplinados que todos eles tinham sido.

Como ele ajudara a abrir a caixa, tinham-lhe atribuído o demónio da Morte. Supunha que era uma troca justa, porque a sua acção estivera prestes a causar a morte da humanidade inteira.

Tinha a responsabilidade de capturar as almas humanas e de as acompanhar até ao seu lugar de descanso final. Devia fazê-lo, mesmo que não quisesse. Não gostava de afastar os inocentes das suas famílias e não se alegrava por levar os culpados para a sua tortura, mas fazia ambas as coisas sem questionar as ordens, sem hesitar. Depressa aprendera que a resistência causava uma agonia tão completa e inexorável que até os deuses tremiam ao pensar nisso.

A sua obediência significaria que era dócil? Que era atencioso? Não. Oh, não! Não podia dar-se ao luxo de ter determinadas emoções. O amor, a compaixão e a piedade eram inimigos da sua difícil situação.

Raiva? Algumas vezes, sentia-a.

Tinha pena de quem o pressionasse demasiado, porque ele transformar-se-ia num demónio. Numa besta. Numa entidade sinistra que não hesitaria em agarrar um coração humano e espremê-lo. Espremê-lo com tanta força que o humano perderia a respiração e rogaria que lhe desse o beijo doce do sono eterno, que só ele podia oferecer.

Oh, sim! Tinha muito pouco poder sobre o demónio. E se os outros não tivessem cuidado, iria buscá-los…

Um

Anya, deusa da Anarquia, filha da Desordem e portadora do Caos, estava à beira de uma pista de dança cheia de gente. Todas as dançarinas eram mulheres humanas, bonitas e quase nuas, que tinham sido especificamente escolhidas pelos Senhores do Submundo para lhes proporcionarem uma noite de entretenimento. Tanto vertical, como horizontal.

Havia nuvens de fumo que formavam uma névoa à sua volta e o candeeiro girava e criava uma chuva de luzes dentro da discoteca, desenhando círculos lentos. Pelo canto do olho, Anya viu um imortal a possuir uma linda rapariga.

«As festas de que eu gosto», pensou, com um sorriso de atrevimento… embora não a tivessem convidado. «Como se isso me impedisse de vir.»

Os Senhores do Submundo eram guerreiros imortais possuídos pelos demónios que tinham fugido da caixa de Pandora. E naquele momento, com algumas rondas de álcool e de sexo, os guerreiros estavam a despedir-se de Budapeste, a cidade que fora o seu lar durante centenas de anos.

Anya queria entrar em acção com um guerreiro em particular.

– Afastem-se – sussurrou, contendo a sua tendência para gritar «Fogo!» e observar como os humanos corriam em pânico, gritando histericamente. «Deixa-os divertirem-se.»

Um ritmo trepidante de música rock, que seguia o compasso dos batimentos descompassados do seu coração, saiu a todo o volume pelos altifalantes, fazendo com que fosse impossível que alguém a ouvisse. No entanto, todos obedeceram, impelidos por uma obrigação que provavelmente não entendiam.

Abriram-lhe caminho, lentamente… muito lentamente…

Finalmente, o objecto do seu fascínio apareceu à frente dos seus olhos e ela tremeu: Lucien. Cheio de cicatrizes, irresistivelmente estóico e possuído pelo espírito da Morte. Naquele momento, estava sentado numa mesa do fundo, a falar com Reyes, o seu amigo e companheiro na imortalidade.

De que estavam a falar? Se Lucien queria que o guardião da Dor lhe proporcionasse uma daquelas mulheres mortais, a menor das suas preocupações seria um falso alarme de fogo. Cerrando os dentes, Anya inclinou a cabeça concentrou-se neles. Depois de apagar o ruído que os rodeava, ouviu.

– Ela tinha razão. Revi as fotografias no computador de Torin. Os templos estão a elevar-se do mar – disse Reyes. – Um é na Grécia e o outro é em Roma e, se continuarem a elevar-se a essa velocidade, estarão suficientemente adiantados para podermos explorá-los amanhã.

– E porque é que os humanos não sabem nada deles? – perguntou Lucien, esfregando o queixo com dois dedos, um gesto tipicamente dele. – Paris viu as notícias de diferentes cadeias de televisão e não dizem nada, nem sequer há especulações.

«Tolo!», pensou Anya, aliviada por o sexo não ser o assunto da noite. «Vocês sabem porque eu queria que soubessem.»

Ninguém mais os veria. Ela assegurara-se disso, usando o chamado «caos», a sua principal fonte de poder. Escondera os templos com tempestades para manter os humanos afastados e, ao mesmo tempo, proporcionara informação suficiente aos Senhores para que saíssem de Budapeste.

Ela queria que Lucien saísse de Budapeste, que estivesse fora do seu ambiente. Um homem perturbado era mais fácil de controlar.

Reyes suspirou.

– Talvez os responsáveis sejam os novos deuses. Tenho quase a certeza de que nos odeiam e estão desejosos de nos destruir, só porque albergamos os demónios.

A expressão de Lucien continuava perdida.

– Não importa quem é o responsável. Iremos amanhã, tal como tínhamos planeado. Estou desejoso de revistar um desses templos.

– Se tivermos sorte – disse Reyes, – encontraremos a maldita caixa.

Anya passou a língua pelos dentes. A maldita caixa, dimOuniak, a caixa de Pandora. Feita com os ossos da deusa da Opressão. A caixa tinha poder suficiente para confinar no seu interior demónios tão vis que nem sequer o inferno conseguia contê-los. Também era suficientemente poderosa para sugar os demónios novamente para o seu interior, tirando-os dos Senhores, os seus anfitriões. Embora os Senhores não tivessem querido albergar os demónios, com o passar do tempo a sua sobrevivência passara a depender das bestas e era desnecessário dizer que os guerreiros desejavam ter a caixa em seu poder.

Novamente, Lucien assentiu.

– Não penses nisso agora, haverá tempo amanhã.

Agora vai-te embora e desfruta da festa. Não percas nem mais um momento na minha companhia enfadonha.

Enfadonha? Pois! Anya nunca conhecera ninguém que a estimulasse tanto.

Reyes hesitou, mas depois levantou-se e deixou Lucien a sós. Nenhuma mulher humana se aproximou dele. Olhavam para ele, sim. Encolhiam-se ao ver as suas cicatrizes. Nenhuma queria ter nada a ver com ele e isso salvava-lhes a vida.

– Repara na minha presença! – ordenou Anya, suavemente.

Passou um momento e ele não obedeceu.

Vários humanos olharam para ela, mas Lucien continuou a observar fixamente o copo vazio que tinha à sua frente, com uma expressão nostálgica. Para consternação de Anya, os imortais eram indiferentes às suas ordens. Cortesia dos deuses.

– Idiotas… – murmurou ela. – Tudo para incomodar a Anarquia.

Anya não fora favorecida durante os seus dias no Olimpo. As deusas nunca tinham gostado dela porque pensavam que era uma réplica da «sua atrevida mãe» e que seduziria os seus maridos. De igual modo, os deuses não a respeitavam, também por causa da sua mãe. No entanto, eles desejavam-na. Bom, até ter morto o capitão da guarda e terem começado a considerá-la demasiado selvagem. Eram uns idiotas. O capitão merecia o que lhe fizera, por tentar violá-la. Ela não se arrependia de o ter apunhalado no coração. A liberdade de escolha era muito valiosa e qualquer pessoa que tentasse arrebatar a sua sentiria o aço das suas adagas.

Escolha. Essa palavra devolveu-a ao presente. O que raios era preciso fazer para convencer Lucien a escolhê-la?

– Repara em mim, Lucien. Por favor.

Novamente, não lhe fez caso.

Anya bateu com o pé no chão. Durante semanas, escondera-se no seu manto de invisibilidade e seguira Lucien, observara-o e estudara-o. E sim, sentira desejo por ele. Em parte, lamentava tê-lo conhecido, ter permitido que Cronos, o novo rei dos deuses, a intrigasse com histórias sobre aqueles Senhores há alguns meses.

«Talvez seja eu a idiota.»

Cronos acabara de fugir do Tártaro, uma prisão para imortais, e um lugar que ela conhecia muito bem.

Cronos prendera Zeus e outros lá e também os pais de Anya. Quando Anya fora procurá-los, Cronos estava à espera. Pedira-lhe o seu maior tesouro, mas ela recusara-se a dar-lho, portanto, ele tentara assustá-la.

«Dá-me o que quero ou enviarei os Senhores do Submundo atrás de ti. Estão possuídos pelos demónios, como animais sedentos de sangue, e não hesitarão em esfolar-te.» Blá, blá, blá.

Longe de a assustar, estas palavras tinham provocado nela o desejo de procurar os guerreiros. Pensara em derrotá-los e rir-se de Cronos. No entanto, assim que vira Lucien, obcecara-se com ele. Esquecera quais eram os seus motivos para estar ali e até ajudara aqueles guerreiros supostamente malvados.

As contradições cativavam-na e Lucien tinha muitas. Estava cheio de cicatrizes, mas não magoado. Era bom, mas inflexível. Era tranquilo, um imortal que se cingia às regras, não sedento de sangue, tal como Cronos afirmara. Estava possuído por um espírito maligno, mas nunca traíra o seu código pessoal de honra. Lidava com a morte todos os dias, todas as noites, mas mesmo assim, lutava para viver.

Fascinante.

Como se aquilo não fosse suficiente para provocar o seu interesse, Lucien tinha uma fragrância a flores que despertava nela pensamentos decadentes e escandalosos cada vez que se aproximava dele. Porquê? Qualquer outro homem com aquele cheiro tê-la-ia feito rir-se. No entanto, com Lucien só sentia ânsia pelas suas carícias.

Era muito atraente. Tinha os olhos mais estranhos que ela alguma vez vira, um azul e o outro castanho e ambos cheios do espírito de homem e de demónio. E as suas cicatrizes… eram um belo testemunho de toda a dor e sofrimento que superara.

– Eh, linda! Vem dançar comigo – disse um dos guerreiros.

Paris. Anya reconheceu imediatamente a promessa de sensualidade que havia no seu tom de voz.

Devia ter acabado de se divertir com aquela humana contra a parede da discoteca e estava à procura de outra rapariga bonita e tola para se saciar. Ia ter de continuar a procurar.

– Deixa-me em paz.

Sem se deixar afectar pela sua falta de interesse, ele segurou-a pelo pulso.

– Gostarás, prometo-te.

Ela afastou-o com um movimento do pulso. Paris estava possuído pela Promiscuidade e fora abençoado com uma maravilhosa pele clara, uns olhos azuis muito brilhantes e uma cara que, certamente, fazia cantar os anjos, mas não era Lucien e não tinha interesse para ela.

– Afasta as mãos – murmurou Anya, – ou cortar-tas-ei.

Ele riu-se como se aquilo fosse uma brincadeira, sem saber que ela faria isso e mais. Nunca proferia uma ameaça que não estivesse disposta a cumprir. Fazê-lo seria uma fraqueza e Anya prometera-se há muito tempo que nunca mais voltaria a mostrar a mínima fragilidade.

Os seus inimigos adorariam aproveitar-se dela.

Felizmente, Paris não tentou voltar a agarrá-la.

– Em troca de um beijo – disse, num tom rouco, –deixar-te-ia fazer o que quisesses com as minhas mãos.

– Nesse caso, cortar-te-ei também os genitais. O que te parece?

Paris deu uma gargalhada que chamou a atenção de Lucien. Ele levantou o olhar e olhou primeiro para o seu amigo e depois para Anya. Fraquejaram-lhe os joelhos. Oh, meu Deus! Esqueceu-se de Paris e respirou fundo. O fogo que vira a arder nos olhos de Lucien era imaginação dela?

«Agora ou nunca». Humedeceu os lábios e, sem desviar o olhar dele, caminhou sensualmente até à sua mesa. A meio caminho, parou e fez-lhe um gesto com o dedo para que caminhasse até ela. Lucien levantou-se e aproximou-se, como se um fio invisível o puxasse.

Tão perto, era um metro e noventa de músculo e perigo. Pura tentação.

Anya sorriu lentamente.

– Finalmente, encontramo-nos, Flores.

Anya não lhe deu tempo para responder. Esfregou a anca esquerda contra ele e virou-se para lhe oferecer uma visão das suas costas. Tinha um espartilho preso com fitas finas e sabia que a cintura da saia estava tão em baixo nas ancas que deixava a descoberto a elástico da tanga. Oh!

Os homens, mortais ou não, normalmente derretiam-se quando viam uma coisa que não deviam ver.

Lucien assobiou em voz baixa.

Ela sorriu. Oh, rico progresso!

– Porque me chamaste? – perguntou ele, tranquila e disciplinadamente.

– Queria dançar contigo – disse ela, olhando para trás. – É um crime?

Ele não hesitou ao responder.

– Sim.

– Muito bem. Sempre gostei de infringir a lei.

Uma pausa de confusão. Depois:

– Quanto é que Paris te pagou para fazeres isto?

– Vão pagar-me? Oh, que bom! – exclamou Anya e, com um sorriso, aproximou-se dele de costas e esfregou-se contra o seu corpo. – O que tenho de fazer? Dar-te orgasmos?

Nos seus sonhos, ele agarrava-a e penetrava o seu corpo naquele momento. Na realidade, Lucien recuou como se ela fosse uma bomba prestes a explodir e pôs distância entre os dois.

Ela teve uma sensação imediata de perda.

– Nada de contacto – disse ele. Provavelmente, tentara parecer calmo, mas notara-se o seu nervosismo. A sua tensão.

Anya semicerrou os olhos. À sua volta, todos tinham visto a sua interacção e como ele a rejeitara. Ela ordenou-lhes, com um gesto carrancudo: «Isto não é da vossa incumbência! Virem-se!»

Os humanos obedeceram. No entanto, o resto dos Senhores aproximou-se dela, olhando para ela fixamente e com curiosidade. Sem dúvida, queriam saber quem era e o que fazia ali.

Deviam ter cuidado e Anya entendia. Ainda sofriam a perseguição dos Caçadores, um grupo de humanos que achavam, estupidamente, que podiam criar uma utopia de paz e harmonia se libertassem o mundo dos Senhores e dos demónios que albergavam.

«Não faças caso», disse para si. «Estás a ficar sem tempo, rapariga.»

Voltou a concentrar-se em Lucien, para quem olhou sem se virar completamente.

– Onde estávamos? – perguntou e passou um dedo pelo elástico da tanga até atrair o olhar de Lucien para as asas de anjo que havia no meio.

– Eu estava prestes a ir-me embora – balbuciou ele.

– Mas eu não quero que vás – disse Anya, com uma careta.

Lucien deu outro passo para trás.

– O que se passa, querido? – perguntou Anya, aproximando dele sem piedade. – Tens medo de uma mulher?

Ele cerrou os dentes e não respondeu. Embora também não continuasse a afastar-se.

– Tens medo de mim?

– Não sabes o que estás a fazer, mulher.

– Oh, claro que sei – replicou ela e passou o olhar por todo o seu corpo.

– Disse que não queria contacto! – gritou ele.

Anya olhou para ele nos olhos e levantou as mãos, com as palmas para fora.

– Não estou a tocar-te, querido.

«Embora tencione fazê-lo.»

– O teu olhar diz outra coisa – respondeu ele, com tensão.

– Isso é porque…

– Eu dançarei contigo – disse outro guerreiro. Paris novamente.

– Não – respondeu Anya, sem olhar para ele. Ela desejava Lucien e só Lucien. Nenhum outro serviria.

– Pode ser um engodo – disse outro Senhor diferente, provavelmente, olhando para ela com suspeita. Anya reconheceu o tom grave da sua voz: Sabin, o guardião da Dúvida.

Por favor. Engodo? Como se ela tentasse seduzir alguém por uma razão que não fosse completamente egoísta. Os engodos eram raparigas tolas, dedicadas ao sacrifício: a sua missão consistia em distrair os Senhores para que os Caçadores pudessem aproximar deles e matá-los. E, realmente, que tipo de idiota ia querer matar os Senhores, em vez de se divertir um pouco com eles?

– Duvido que os Caçadores tenham conseguido reorganizar-se tão rapidamente depois da praga –disse Reyes.

Ah, sim! A praga. Um dos Senhores estava possuído pelo demónio da Doença. Se tocasse na pele de qualquer humano, infectava-o com uma doença terrível que se espalhava e matava com uma rapidez avassaladora.

Consciente disso, Torin usava sempre luvas e mal saía da fortaleza onde os Senhores viviam, decidido a proteger os humanos da sua maldição. Não fora culpa dele que um grupo de Caçadores tivesse entrado no castelo há algumas semanas e lhe tivesse cortado o pescoço.

Torin sobrevivera, os Caçadores não.

Infelizmente, ainda restavam muitos. Eram como moscas. Se se acabasse com um, apareciam outros dois. Mesmo naquele momento, estavam em algum lugar, à espera de uma boa oportunidade para atacar. Os Senhores deviam ter cuidado.

– Além disso, não há modo de terem encontrado uma forma de atravessar as nossas medidas de segurança – acrescentou Reyes e o seu tom voz áspero afastou Anya dos seus pensamentos.

– Como não havia forma de entrarem no castelo e de decapitarem Torin? – perguntou Sabin.

– Bolas! Paris, fica aqui e vigia-a enquanto eu verifico se não há ninguém perigoso no perímetro – passos, palavrões, murmúrios.

Ena, ena! Se os Senhores encontrassem alguma pista de que havia um Caçador por perto, não conseguiria convencê-los de que ela era inocente. Pelo menos, daquele crime. Lucien nunca confiaria nela, nunca relaxaria na sua companhia. Nunca lhe tocaria, excepto com fúria.

Ela não permitiu que aquela preocupação se reflectisse no seu rosto.

– Vi a multidão e entrei – disse a Paris e ao outro Senhor que estava a observá-la e acrescentou: – E talvez o grandalhão e eu possamos falar durante os próximos minutos sem interrupções. Em privado.

Talvez captassem a indirecta, mas não se foram embora.

Muito bem. Trabalharia à frente deles.

Começou a mexer-se ao ritmo da música e, sem desviar o olhar de Lucien, passou os dedos pela barriga lisa. «Troca as minhas mãos pelas tuas», projectou para a sua mente.

É claro, Lucien não o fez. No entanto, os seus olhos seguiram cada um dos movimentos. Engoliu em seco.

– Dança comigo – disse ela em voz alta, com a esperança de que ele não a ignorasse com tanta facilidade daquela vez. Lambeu os lábios para os humedecer.

– Não – sussurrou ele.

– Por favor. Não me achas desejável, Flores?

– Esse não é o meu nome.

– Muito bem, querido. Não me achas desejável?

– Não importa o que penso de ti.

– Isso não responde à minha pergunta – disse ela, com uma careta.

– Não queria que respondesse.

Que homem tão frustrante. «Tenta outra coisa. Algo mais descarado.»

Como se não tivesse sido completamente descarada.

Muito bem. Virou-se e baixou-se. A saia subiu-lhe pelas coxas, oferecendo uma visão melhor da sua tanga azul e das asas que se estendiam do meio. Quando Anya voltou a levantar-se, imitando os movimentos do sexo, virou-se lentamente e ofereceu-lhe uma visão de todo o corpo.

Ele inspirou bruscamente, com todos os músculos do corpo tensos.

– Cheiras a morangos com natas – disse Lucien e, enquanto falava, parecia um predador prestes a atacar.

«Por favor, por favor, por favor», pensou ela.

– De certeza que também é o meu sabor – disse, pestanejando com sedução, apesar do facto de ele ter mencionado o seu cheiro como se fosse uma afronta terrível.

Lucien emitiu um gemido e deu um passo para ela.

Então, Anya aproveitou a oportunidade e trocou a música rock da discoteca por uma canção suave, lenta.

– Vá lá, dança comigo – pediu a Lucien. – É a única maneira de te livrares de mim.

E para o provocar um pouco, aproximou-se, pôs-se em bicos de pés e mordeu-lhe suavemente o lóbulo da orelha.

Ele voltou a resmungar, mas finalmente, rodeou-a com os seus braços. Ao princípio, Anya pensou que era para a empurrar, mas Lucien colou-a ao seu corpo e fez com que apertasse os seios contra o seu peito e que se sentasse sobre a sua coxa esquerda. Ela sentiu-se muito excitada.

– Se queres dançar, dançaremos.

Lentamente, ele balançou-a de um lado para o outro sem que os seus corpos se afastassem. Anya sentiu centenas de pontadas de prazer.

Pelos deuses do Céu, aquilo era melhor do que imaginara. Fechou os olhos. Lucien era muito grande. Tinha os ombros muito largos e a parte superior do corpo tão musculada que a envolvia. E durante o tempo todo, a sua respiração acariciava-lhe a face como um amante atento. Tremendo, ela deslizou as mãos pelas suas costas e passou-as pelo seu cabelo escuro, sedoso. Sim. Mais.

«Calma, rapariga», disse para si.

Embora Lucien a desejasse tanto como ela o desejava, não podia tê-lo. Não completamente. Naquele sentido, Anya estava tão amaldiçoada como ele. No entanto, de qualquer modo podia desfrutar daquele momento. Finalmente, ele estava a responder-lhe!

Lucien acariciou-lhe a linha do queixo com o nariz.

– Todos os homens te desejam – disse suavemente, embora as suas palavras fossem amargas. –Porquê eu?

– Porque sim – respondeu Anya, inalando o seu perfume a rosas.

– Isso não responde à minha pergunta.

– Não queria responder – replicou ela.

Então, Lucien agarrou-a com força.

– Parece-te divertido gozar com o homem mais feio deste lugar?

– O mais feio? – perguntou Anya. Ele atraía-a mais do que qualquer homem na sua vida. – Mas Paris nem chega aos teus pés, querido.

Lucien franziu o sobrolho e soltou-a. Abanou a cabeça, como se estivesse a tentar esclarecer as ideias.

– Sei o que sou – disse, com certa amargura. – Dizer que sou feio é ser amável.

Ela ficou imóvel, olhando para os seus olhos sedutores. Não sabia como era atraente? Irradiava força e vitalidade. Irradiava uma masculinidade selvagem. Tudo nele a cativava.

– Se sabes o que és, querido, então saberás que és sexy e deliciosamente ameaçador.

E ela precisava mais dele. Sentiu um calafrio que fez vibrar todos os seus membros. «Acaricia-me outra vez.»

– Suponho que as minhas cicatrizes não te incomodam – disse ele, sem mostrar nenhuma emoção.

– Incomodar? – aquelas cicatrizes não o tornavam feio. Tornavam-no irresistível. – Excitam-me.

– Mentirosa!

– Algumas vezes – admitiu ela, «mas não nisto.»

Anya observou a sua cara. O modo como fizera aquelas cicatrizes não devia ter sido agradável. Sofrera. Muito. De repente, essa ideia causou-lhe raiva. Quem o magoara e porquê? Uma amante ciumenta?

Parecia que alguém pegara numa faca e cortara Lucien como um melão e depois tentara juntar as peças sem ordem. Mesmo assim, a maioria dos imortais sarava rapidamente e não ficavam marcas das suas feridas. Assim, mesmo que o tivessem cortado, Lucien devia ter-se curado por completo.

Teria cicatrizes semelhantes no resto do corpo? Ao pensar nisso, sentiu-se muito excitada. Tinha-o espiado durante semanas, mas não conseguira ver o seu corpo. Ele conseguia sempre tomar banho e mudar de roupa depois de ela se ir embora.

Teria sentido a sua presença e decidido escon der-se?

– Se não te conhecesse, pensaria que és um engodo, como os meus amigos – disse ele.

– E porque pensas que me conheces?

Ele arqueou uma sobrancelha.

– És um engodo?

– Queres que seja? – perguntou ela, no tom mais sedutor que pôde. – Porque posso ser o que tu quiseres, amor.

– Pára com isso – resmungou ele. – Eu não gosto deste jogo que estás a jogar.

– Não estou a jogar, Flores. Juro-te.

– O que queres de mim? E não me mintas.

– Aceitarei um beijo – disse ela, olhando para os seus lábios suaves, rosados. – Na verdade, insisto que me dês um beijo.

– Não encontrei nenhum Caçador – disse Reyes, naquele momento. Aparecera, de repente, junto de Lucien.

– Isso não significa nada! – protestou Sabin.

– Não é caçadora e não trabalha para eles – disse Lucien, sem desviar o olhar de Anya enquanto fazia um gesto aos seus amigos para que se retirassem. –Preciso de estar um momento a sós com ela.

Aquela afirmação espantou Anya. E, além disso, queria estar com ela? Sim! Só que os seus amigos não se iam embora. Idiotas.

– Somos dois desconhecidos – disse Lucien, continuando a sua conversa como se não tivessem sido interrompidos.

– E então? Os desconhecidos podem relacionar-se – disse ela. – Beijar-se um pouco não tem nada de mal, pois não?

– E o que vais conseguir com um único beijo?

Tudo. Anya sentiu uma grande impaciência e passou a língua pelos lábios.

– És sempre tão falador?

– Não.

– Beija-a, Lucien, antes de eu o fazer, quer seja engodo ou não – disse Paris, com uma gargalhada. Embora fosse uma gargalhada bondosa, tinha um toque de aço.

Lucien continuava a resistir. Ela sentia os batimentos do seu coração contra as costelas. Sentir-se-ia incomodado com o seu público? Era uma pena. Ela estava disposta a arriscar tudo e não ia deixar que ele fugisse.

– Isto é inútil – disse Lucien.

– E então? O inútil pode ser divertido. Vamos, pára de hesitar. Age.

Anya puxou a sua cabeça para baixo, para o seu rosto, e encostou os seus lábios contra os dele. Imediatamente, ele abriu a boca e as suas línguas encontraram-se numa dança profunda e húmida. Ela sentiu uma onda de calor quando o sabor a rosa e a menta a invadiu.

Colou-se a ele. Precisava dele. Enquanto o fogo a devorava, esfregou-se contra o seu corpo, incapaz de se conter. Ele agarrou-a pelo cabelo e tomou o controlo absoluto da sua boca. Ela vira-se presa num redemoinho de paixão e sede que só Lucien conseguia acalmar. Entrara pelas portas do Céu sem dar um único passo.

Alguém aclamou e outro assobiou.

Num instante, Anya sentiu-se como se a levantassem do chão e não tivesse onde se segurar. Ao fim de um instante, sentiu uma parede fria contra as costas. Os aplausos tinham cessado repentinamente. O ar frio tocava-lhe na pele.

Estavam na rua?, perguntou-se. Enquanto isso, estava a gemer sem se preocupar e a rodear a cintura de Lucien com as pernas enquanto a sua língua a conquistava. Agarrou-lhe a anca com força com uma mão e, com a outra, puxou-lhe o cabelo, fazendo com que inclinasse a cabeça para obter mais contacto.

– És… és… – sussurrou, ferozmente.

– Estou desesperada. Não fales mais. Beija-me.

Ele perdeu o controlo. Voltou a afundar a língua na sua boca e a paixão e o calor transformaram-se num inferno ardente. Verdadeiramente, Anya estava a arder. Estava frenética. Ele estava em todo o seu corpo, tornara-se uma parte dela.

Não queria que aquilo acabasse.

– Mais – disse Lucien, num tom rouco, e pôs-lhe a palma da mão num peito.

– Sim – sussurrou ela. – Mais, mais, mais.

– É óptimo.

– Espantoso.

– Acaricia-me – pediu ele, com um gemido.

Ao ouvir o seu pedido, ela sentiu que o seu desejo se intensificava. Talvez ele a desejasse. Afinal de contas, pedira-lhe para o acariciar, o que significava que queria mais do que um beijo.

– Será um prazer – disse.

Com uma mão, subiu-lhe a t-shirt e, com a outra, acariciou-lhe a barriga. Ao sentir as cicatrizes, tremeu. A pele franzida era muito quente.

Os músculos ficavam tensos com cada toque e mordeu o lábio inferior de Anya.

– Sim, assim.

Ela esteve prestes a chegar ao clímax. A reacção de Lucien fora como combustível para um fogo que já era abrasador. Gemeu.

Com os dedos, desenhou os círculos dos seus mamilos antes de os beliscar suavemente. Cada vez que os acariciava, sentia que o seu próprio corpo vibrava de desejo.

– Eu adoro tocar em ti.

Lucien lambeu-lhe o pescoço e deixou um rasto de calor sensual na sua pele que fez com que Anya abrisse os olhos de repente e esteve prestes a ofegar quando percebeu que realmente estavam na rua, apoiados contra o muro exterior da discoteca, num canto escuro. Lucien devia tê-los teletransportado num instante.

Ele era o único Senhor capaz de se mudar de um sítio para o outro com um pensamento. Uma capacidade que ela também possuía. Anya só lamentou que não os tivesse teletransportado para um quarto.

Não, não, pensou, com desespero. Para um quarto não. Não devia pensar naquilo, mesmo que fosse apenas por um segundo. O resto das mulheres podia desfrutar da sensação eléctrica da pele contra a pele e dos corpos nus a esforçarem-se para chegar ao êxtase, mas ela não. Ela nunca.

– Desejo-te – sussurrou ele.

– Já era hora – respondeu ela. – Eu também preciso de sentir mais de ti. Preciso de te acariciar mais – disse.

Levou as mãos até ao seu sexo para lhe abrir o fecho das calças e tocar na sua erecção. No entanto, ouviu o eco de uns passos. Lucien também os ouviu porque ficou tenso e afastou-se dela.

Ele estava a ofegar e ela também. Os joelhos de Anya fraquejaram enquanto se entreolhavam durante um segundo. A paixão ainda chispava entre eles. Nunca teria pensado que um beijo podia provocar semelhante ignição.

– Veste a roupa – disse ele.

– Mas… mas… – Anya não estava pronta para acabar, com público ou sem ele. Se Lucien lhe desse um instante, ela podia teletransportá-los para outro sítio num segundo.

– Fá-lo. Agora.

Não, não ia haver teletransporte, disse Anya para si, com desilusão. A julgar pela expressão dura de Lucien, compreendeu que ele acabara. Com os beijos e com ela.

Compôs a saia e o espartilho com as mãos trémulas e, quase imediatamente, vários Senhores viraram a esquina e apareceram à frente deles com uma expressão mal-humorada.

– Eu adoro que desapareças assim – disse um deles, Gideon, num tom de irritação que deixava bem claro que não gostava daquilo. Anya sabia que estava possuído pelo espírito da Mentira e que não conseguia dizer uma única verdade.

– Cala-te! – ordenou Reyes. O pobre Reyes, sempre torturado, guardião da Dor, gostava de se ferir. Uma vez, ela vira-o saltar do alto da fortaleza em que viviam e desfrutar depois da dor dos seus ossos partidos. – Talvez pareça inocente, mas não a revistaste para ver se tinha armas antes de engolires a sua língua.

– Estou praticamente nua – disse ela com exasperação, embora ninguém lhe fizesse caso. – Que arma posso esconder?

Bom, na verdade, escondia algumas. Mas não era para tanto. Uma rapariga tinha de se proteger.

– Tenho tudo sob controlo – disse Lucien. –Acho que consigo lidar com uma mulher sozinha, armada ou não.

Anya sempre se sentira fascinada com a sua calma. Até àquele momento. Onde estava a sua paixão? Não era justo que tivesse recuperado tão rapidamente enquanto ela ainda estava a tentar recuperar a respiração. Não conseguia parar de tremer. Pior ainda, o seu coração não parava de acelerar.

– Quem é? – inquiriu Reyes.

– Talvez não seja um engodo, mas é alguma coisa – disse Paris. – Teletransportaste-a e não começou a gritar.

Então, todos olharam para Anya com os olhos semicerrados. Ela nunca se sentira tão vulnerável em todos os seus séculos de vida. Arriscar-se a ser capturada por beijar Lucien valera a pena, mas isso não significava que tivesse de se submeter a um interrogatório.

– Esqueçam. Não vou dizer-vos nada.

– Eu não te convidei – respondeu Paris, – e Reyes não encontrou ninguém que seja teu amigo. Porque tentaste seduzir Lucien?

«Ninguém tentaria seduzir voluntariamente o guerreiro cheio de cicatrizes», proclamava o seu tom de voz. Aquilo irritou Anya, embora soubesse que Paris não queria ser mal-educado nem insensível com o seu amigo. Provavelmente, todos o consideravam um facto objectivo.

– Porque estão a interrogar-me? – perguntou ela, olhando para todos fixamente. Para todos menos para Lucien, evitando-o. Talvez perdesse a força se a sua expressão continuasse a ser fria e sem emoção. –Vi-o, gostei e fui atrás dele. É só isso.

Os Senhores cruzaram os braços. Era evidente que não acreditavam. Tinham formado um semicírculo à sua volta sem que ela percebesse. Anya teve de fazer um esforço para não olhar para o céu com exasperação.

– Não o desejas a sério – disse Reyes. – Todos sabemos. Diz-nos o que queres antes de ter de te obrigar.

Obrigá-la? Por favor. Ela também cruzou os braços. Um pouco antes tinham encorajado Lucien a beijá-la, porque se comportavam naquele momento como se Lucien não conseguisse tentar uma mulher?

– Queria ir para a cama com ele, entendes, idiota?

Houve uma pausa de espanto.

Lucien interpôs-se entre os seus amigos e ela. Estaria a protegê-la? Que doce. Desnecessário, mas doce. A sua raiva suavizou-se. Teve vontade de o abraçar.

– Deixem-na em paz – disse ele. – Não vale a pena.

A sensação de felicidade de Anya desapareceu. Não valia a pena? Ele acabara de a acariciar e de encostar o seu corpo contra o dela, como podia dizer algo do género?

Uma neblina vermelha espalhou-se à frente dos seus olhos. A sua mãe devia ter-se sentido assim. Quase todos os homens que tinham partilhado o leito de Disnomia tinham-na insultado depois de satisfazerem o seu desejo. «És uma mulher fácil», diziam, «Não serves para mais nada.»

Anya conhecia bem a sua mãe, sabia que Disnomia fora escrava da sua natureza anárquica e também sabia que sempre procurara o amor: deuses comprometidos, deuses solteiros… não importava. Se a desejassem, entregava-se a eles. Provavelmente porque, durante as poucas horas que passava nos braços dos seus amantes, sentia-se aceite e valorizada e os seus desejos mais profundos viam-se saciados.

O que fazia com que as traições posteriores fossem ainda mais dolorosas, pensou Anya, olhando para Lucien. De todas as coisas que esperara e quisera que dissesse, nenhuma era «não vale a pena». Talvez «é minha»; talvez «preciso dela». «Não lhe toquem», de certeza.

Ela não queria ter a mesma vida que a sua mãe, por muito que a amasse, e há muito tempo que jurara que não permitiria que a usassem.

«Mas olha para mim agora. Roguei a Lucien que me beijasse e ele acha que sou uma mulher que não vale a pena.»

Com um gemido, aplicando toda a sua força, a sua fúria e a sua dor, empurrou-o. Empurrou-o para a frente como uma bala de canhão e ele chocou contra Paris. Ambos emitiram uma exclamação de dor e afastaram-se um do outro.

Quando Lucien se endireitou, virou-se para olhar para ela.

– Não vás por aí – disse.

– Ainda agora comecei – respondeu Anya e encaminhou-se para ele com o punho levantado para fazer com que engolisse os seus dentes brancos e perfeitos.

– Anya… – disse ele, com um sussurro. – Chega.

Ela ficou imóvel devido ao espanto.

– Sabes quem sou. Como é possível?

Tinham falado uma vez, há semanas, mas ele nunca a vira antes desse dia. Ela assegurara-se de que assim fosse.

– Estiveste a seguir-me. Reconheci o teu cheiro.

Morangos com natas, dissera-lhe ele antes, num tom de acusação. Anya esbugalhou os olhos. Sentiu prazer e mortificação ao mesmo tempo. Durante todo esse tempo, Lucien soubera que ela estivera a observá-lo.

– Porque estiveste a interrogar-me se sabias quem era? E se sabias que estava a seguir-te porque não me pediste para me mostrar?

– Só percebi quem eras quando começaram com a conversa dos Caçadores. E, quanto à segunda pergunta, não desejava assustar-te até descobrir qual era o teu propósito – explicou Lucien e depois fez uma pausa e esperou que ela falasse. Anya não o fez e ele inquiriu: – Qual é o teu propósito?

– Eu… tu… – bolas! O que ia dizer-lhe? – Deves-me um favor! Salvei o teu amigo, libertei-o da sua maldição.

Muito bem. Uma explicação racional, verdadeira e que, com sorte, afastaria o curso da conversa das suas motivações.

– Ah… – disse ele e assentiu, erguendo os ombros. – Agora tudo faz sentido. Vieste buscar a tua recompensa.

– Bom, não – por muito que quisesse preservar o seu orgulho, Anya percebeu que não queria que ele pensasse que concedia os seus beijos tão facilmente. – Ainda não.

Ele franziu o sobrolho.

– Mas acabaste de dizer que…

– Sei o que disse.

– Então, porque que vieste? Porque estiveste a vigiar-me?

Anya sentiu-se frustrada outra vez. No entanto, não teve tempo para lhe responder, porque Reyes, Paris e Gideon se aproximaram dela com cara de poucos amigos. Pensariam que iam conseguir agarrá-la?

Em vez de responder a Lucien, dirigiu-se aos outros.

– O que se passa? Não me lembro de vos ter convidado para esta conversa.

– És Anya? – perguntou Reyes, olhando-a dos pés à cabeça com uma expressão de repugnância.

Repugnância? Devia estar agradecido! Não o libertara da maldição que o obrigava a apunhalar o seu amigo até o matar todas as noites? Sim, bolas! No entanto, Anya conhecia aquele olhar muito bem. Devido ao passado amoroso da sua mãe e à expectativa que ela própria despertava devido à sua forma livre de ver a vida, todos os deuses gregos de Olimpo tinham olhado para ela com a mesma repugnância em algum momento.

Ao princípio, Anya sentira-se magoada com aquele desdém petulante. E durante centenas de anos, tentara ser uma rapariga boa: vestir-se como uma freira, falar só quando falavam com ela, manter o olhar baixo. Até conseguira controlar a sua necessidade desesperada de criar desastres. Tudo para ganhar o respeito de uns seres que a veriam sempre como uma prostituta.

Um dia em que voltava para casa a chorar porque, num curso estúpido para deusas sorrira para Ares e Artemisa lhe chamara nomes, a sua mãe falara com ela.

– Faças o que fizeres, vão julgar-te mal – dissera a deusa. – Mas todos devemos ser fiéis à nossa natureza. Comportares-te como outra pessoa só te causará dor e fará com que pareça que tens vergonha do que és. Os outros alimentarão essa vergonha. És um ser maravilhoso, Anya. Deves sentir-te orgulhosa de ti própria. Eu sinto-me orgulhosa de ti.

A partir daquele momento, Anya começara a vestir-se de maneira tão sexy como desejava e, se voltara a baixar o olhar, fora para admirar os seus saltos de agulha. Não voltara a negar a necessidade de desordem nem a prestar atenção aos que a rejeitavam e deixava claro que gostava de ser quem era.

Nunca mais voltaria a envergonhar-se.

– É… interessante ver-te em carne e osso depois do que investiguei sobre ti ultimamente. És a filha da Disnomia – disse Reyes. – A deusa menor da Anarquia.

– Eu não tenho nada de menor – disse ela. – Mas sim, sou uma deusa – acrescentou, erguendo o queixo.

– Na noite em que te deste a conhecer e salvaste a vida a Ashlyn disseste-nos que não eras uma deusa –interveio Lucien. – Disseste-nos que eras apenas uma imortal.

Ela encolheu os ombros. Odiava tanto os deuses que raramente usava o título.

– Menti. Faço-o com frequência. Faz parte do meu encanto, não te parece?

Ninguém respondeu. Era de esperar.

– Nós fomos os guerreiros dos deuses e vivemos no Céu, como, certamente, saberás – continuou Reyes, como se ela não tivesse falado. – Não me lembro de ti.

– Talvez ainda não tivesse nascido, espertinho.

Nos olhos de Reyes reflectiu-se irritação, mas conservou a calma.

– Como te disse, desde que apareceste há algumas semanas, estive a investigar-te. Há muito tempo, foste capturada por assassinar um homem. Depois de trezentos anos de confinamento, os deuses encontraram finalmente um castigo apropriado para ti. Antes de conseguirem executar a sentença, no entanto, conseguiste fugir.

– Correcto.

– A lenda conta que inoculaste o guardião do Tártaro com uma doença, porque, depois de fugires, ele começou a debilitar-se e perdeu a memória. Puseram guardas em todo o lado para aumentar a segurança, visto que os deuses receavam que a força da prisão dependesse da força do seu guardião. Com o tempo, os muros começaram a derrubar-se, o que facilitou a fuga dos Titãs.

E também iam culpá-la por isso? Anya semicerrou os olhos.

– O que se passa com as lendas – disse, – é que a verdade se distorce com frequência para explicar as coisas que os mortais não conseguem entender. É engraçado que tu, o protagonista de tantas lendas, não saibas isso.

– Escondeste-te aqui, entre os humanos – disse Reyes, sem lhe prestar atenção. Outra vez. – Mas não te conformaste com viver em paz. Desencadeaste guerras, roubaste armas e até barcos. Provocaste grandes incêndios e outros desastres, que por sua vez ocasionaram pânico e motins entre os humanos, mortes e encarceramentos.

Ela corou. Sim, fizera essas coisas. Quando chegara à Terra, não sabia como controlar a sua natureza rebelde. Os deuses foram capazes de se proteger dela, mas os humanos não. Além disso, estava fora de si depois de ter passado todos aqueles anos na prisão.

No entanto, finalmente, aprendera que podia saciar a sua necessidade de desordem com pequenos delitos, roubos sem importância, mentiras piedosas e algumas lutas, e evitar assim grandes desastres.

– Eu também fiz os meus trabalhos de casa – disse Anya, suavemente. – Não destruíste cidades e mataste inocentes?

Então, foi Reyes quem corou.

– Tu não és o mesmo homem de antes, tal como eu não sou…

Antes de conseguir acabar a frase, um vento soprou à volta de todos eles, frio e furioso. Anya pestanejou, confusa, mas só durante um instante.

– Bolas! – exclamou, sabendo o que ia acontecer depois.

Como era de esperar, os guerreiros ficaram imóveis, como se o tempo não existisse para eles. Um poder muito maior do que o que eles detinham dominou o mundo que os rodeava. Até Lucien, que estivera a ouvir conversa de Anya com Reyes com atenção, se tornou uma estátua viva.

Ela também.

Não, não, não, não, pensou, e com aquelas palavras, as barras invisíveis da prisão caíram como as folhas de uma árvore. Nada nem ninguém conseguiria mantê-la prisioneira. Já não. O seu pai assegurara-se disso.

Anya dirigiu-se para Lucien para tentar libertá-lo, embora não soubesse porquê, depois das coisas que dissera dela. No entanto, o vento cessou tão repentinamente como começara. Anya sentiu um aperto no coração e a boca seca. Cronos, que se apoderara do trono celestial há alguns meses e impusera novas regras, novos desejos e novos castigos, estava prestes a chegar.

Encontrara-a.

Óptimo! Uma luz azul e brilhante apareceu à frente dela e acabou com a escuridão. Então, Anya desapareceu num instante, com uma tristeza que não tinha o direito de sentir devido ao facto de deixar Lucien para trás. Só levou consigo a lembrança e o sabor do seu beijo.

Dois

Uma névoa escura rodeara Lucien, bloqueando a sua mente num só pensamento: Anya.

Estava a meio de uma conversa com ela, tentando esquecer como os seus corpos encaixavam perfeitamente, como o seu desejo por ela fora intenso e como, durante os curtos minutos que a tivera entre os seus braços, teria traído todos aqueles que conhecia para ter um pouco mais de tempo para estar com ela.

Um beijo nunca o transtornara tanto. O seu demónio gemera a sério. Nunca lhe acontecera nada semelhante e não entendia porque acontecera naquela noite.

Tinha de pensar em alguma coisa.

Porque outra razão é que o facto de dizer que Anya não valia a pena, que não era nada, estivera prestes a matá-lo? No entanto, era o que tinha de dizer. Pelo bem dela e pelo seu próprio bem. Semelhante necessidade era perigosa. E admiti-la era renunciar ao seu controlo.