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HarperCollins 200 anos. Desde 1817.

 

Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

Encontra-me

Título original: Find Me

© 2017, J.S. Monroe

© 2017, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Tradutor: Ana Filipa Velosa

www.harpercollinsiberica.com

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a autorização de HarperCollins Ibérica, S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

Desenho da capa: CalderónStudio

 

ISBN: 978-84-9139-125-8

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

 

 

 

 

Página de título

Créditos

Sumário

Dedicatória

Cita

Primeira Parte

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Capítulo 26

Capítulo 27

Capítulo 28

Capítulo 29

Capítulo 30

Capítulo 31

Capítulo 32

Capítulo 33

Capítulo 34

Capítulo 35

Capítulo 36

Capítulo 37

Capítulo 38

Capítulo 39

Capítulo 40

Capítulo 41

Capítulo 42

Capítulo 43

Capítulo 44

Capítulo 45

Segunda Parte

Capítulo 46

Capítulo 47

Capítulo 48

Capítulo 49

Capítulo 50

Capítulo 51

Capítulo 52

Capítulo 53

Capítulo 54

Capítulo 55

Capítulo 56

Capítulo 57

Capítulo 58

Capítulo 59

Capítulo 60

Capítulo 61

Capítulo 62

Capítulo 63

Capítulo 64

Capítulo 65

Capítulo 66

Capítulo 67

Capítulo 68

Capítulo 69

Capítulo 70

Capítulo 71

Capítulo 72

Capítulo 73

Capítulo 74

Capítulo 75

Capítulo 76

Capítulo 77

Capítulo 78

Capítulo 79

Capítulo 80

Capítulo 81

Capítulo 82

Capítulo 83

Capítulo 84

Capítulo 85

Capítulo 86

Capítulo 87

Capítulo 88

Capítulo 89

Capítulo 90

Capítulo 91

Capítulo 92

Capítulo 93

Capítulo 94

Capítulo 95

Capítulo 96

Capítulo 97

Capítulo 98

Capítulo 99

Capítulo 100

Capítulo 101

Agradecimentos

 

 

 

 

 

 

Para a Hilary

 

 

 

 

 

 

Embora esteja cansado de deambular

Por territórios de grutas e de colinas

Descobrirei para onde ela foi

E beijarei os seus lábios e agarrarei as suas mãos

 

– W. B. YEATS,
de «A canção do Aengus Errante»

 

 

 

 

 

 

Encontrei-a há uns minutos, a um canto, com as asas verticais juntas como mãos em oração. Terá ela simplesmente olhado para a minha vida e escolhido ocultar a sua beleza? Não posso culpá-la por isso.

O Pai ensinou-me a adorar borboletas. Se uma borboleta estivesse presa em casa, ele largava o que estivesse a fazer para a libertar. Ontem, quando andávamos de barco, encontrou uma (a boloria euphrosyne ou laranja-das-montanhas, disse ele) a descansar num saco de velejador ao sol. Chamou-me, mas ela voou quando me aproximei. Observámo-la em silêncio, enquanto rodopiava para longe, despreocupada, corajosa, demasiado longe de terra para sobreviver.

Não tenho a certeza de que tipo de borboleta é esta. Quero escancarar-lhe as asas, trazer alguma cor à minha vida desbotada, mas isso seria uma violação. E já houve demasiadas situações dessas.

 

— Está só a descansar — diz o Pai. Não o vi chegar, mas a sua voz nunca me sobressalta. Tem estado muito por aqui nas últimas semanas, partindo tão discretamente como chega. — As marcas debaixo das asas ajudam-na a passar despercebida.

Tentarei passar despercebida, guardar qualquer beleza que ainda possa ter para o Jar. E um dia, com a ajuda do Pai, voltarei a abrir as minhas asas ao sol.

 

 

PRIMEIRA PARTE

1

 

 

 

 

 

Passaram cinco anos desde o funeral, mas Jar reconhece o seu rosto imediatamente. Ela está a subir as escadas rolantes, ele está a descer, novamente atrasado para o trabalho depois de mais uma noite de farra no lado errado da cidade. Ambas as escadas estão apinhadas, mas ele sente que têm o metro só para eles, passando um pelo outro como se fossem as últimas duas pessoas à face da terra.

O primeiro impulso de Jar é chamar Rosa, ouvir o seu nome sobrepondo-se ao estrépito da hora de ponta. Mas fica imóvel, incapaz de dizer ou fazer o que quer que seja, fitando como flutua em direção à superfície de Londres. Para onde é que vai? Onde é que tem estado?

Recupera o batimento cardíaco, com a palma da mão suada contra o corrimão preto de borracha. Tenta chamá-la novamente, mas o nome fica preso na garganta. Parece distraída, ansiosa, maldisposta. O cabelo de passageira clandestina desapareceu, substituído por uma cabeça rapada que contradiz a recordação que tem dela. E a postura é menos direita do que ele recorda, abatida pelo peso de uma mochila velha, na qual está pendurado um saco de tenda de um padrão floral. As roupas (calças largas à Ali Babá, camisola de lã) também são desleixadas, sem critério, mas ele reconheceria a sua sombra até num arbusto de tojos. Os olhos de um azul-esverdeado a dançar debaixo de umas sobrancelhas sérias. E aqueles lábios travessos, apertados. Ela olha de relance para o fundo das escadas rolantes, talvez à procura de alguém, e integra-se na corrente de transeuntes de passagem. Jar examina as pessoas que estão em baixo, enquanto uma folha de jornal passa por ele numa rajada de vento cálido, rodopiando e dobrando-se sobre si própria. Dois homens avançam por entre a multidão, afastando as pessoas para o lado com a confiança serena da autoridade. Atrás deles, uma fila de anúncios digitais gira como um baralho de cartas.

Frustrado, Jar olha para ambos os lados de uma amálgama turistas que lhe bloqueiam o caminho, como se de alguma forma isso pudesse dispersá-los. Será que os guias de Londres não lhes explicam que devem permanecer do lado direito? Recrimina-se por pensar isso, recordando os seus próprios primeiros dias hesitantes na cidade, acabado de sair do avião vindo de Dublin. E então está finalmente livre, deslizando como uma criança no fundo das escadas, antes de se encaminhar novamente para cima, optando pela escadaria central, dois degraus de cada vez.

— Rosa — chama, aproximando-se das barreiras. — Rosa! — Mas não há qualquer convicção na sua voz, não há crença suficiente para que alguém se vire para trás. Cinco anos é demasiado tempo para manter a fé. Examina o lotado átrio das bilheteiras e deduz que ela virou à esquerda para o pátio principal de Paddington.

Alguns minutos antes, mais falido do que deveria estar a uma semana de receber o salário, passara sorrateiramente pelas barreiras atrás de um transeunte inocente. Agora, tem de voltar a fazer o mesmo, à boleia de um idoso. Não retira disso qualquer satisfação, qualquer prazer pela facilidade com que evita ser detetado enquanto mostra ao homem onde colocar o bilhete e atravessa a barreira com ele. Engano mascarado de gentileza da juventude.

Corre até estar no centro do pátio, onde se detém para recuperar o fôlego, de mãos nos joelhos, sob o vão arqueado da estação austera de Brunel. Onde é que ela está?

E, então, vê-a novamente, encaminhando-se para a Plataforma 1, de onde o comboio para Penzance se prepara para partir. Ziguezagueia entre a multidão, praguejando, pedindo desculpa, procurando não perder de vista a mochila dela.

Ao contornar uma barraca de postais, vê-a à sua frente, junto às carruagens de primeira classe do comboio, olhando de soslaio por cima do ombro. (Costumavam enfiar sorrateiramente postais de lojas como esta debaixo das portas dos quartos da faculdade um do outro, tentando impressionar-se mutuamente com ironia estudantil,) Instintivamente, vira-se também. Os dois homens estão a caminhar na direção deles, um deles com um dedo no ouvido.

Jar olha novamente para a plataforma. Uma guarda apita, ordenando a Rosa que se afaste. Rosa ignora o estridente aviso, balança a pesada porta para a abrir e fecha-a atrás de si com uma determinação que ressoa por toda a estação.

Agora é a vez de ele se aproximar do comboio.

— Afaste-se — grita novamente a segurança, enquanto a carruagem começa a circular.

Corre para a porta, mas ela já está a caminhar pelo corredor, à procura de um lugar, pedindo desculpa quando choca contra o lugar de alguém. Mantendo-se paralelo ao comboio em aceleração, observa-a a colocar a mochila na bagageira superior e a sentar-se à janela. Pela primeira vez, ela parece aperceber-se de alguém do outro lado do vidro, mas ignora-o enquanto se instala, pegando num jornal abandonado, olhando de relance para a parte de cima do compartimento dedicada à bagagem.

O movimento do comboio é demasiado rápido para ele, mas enquanto corre, Jar bate com a mão na janela. Ela levanta o olhar, com os olhos arregalados de susto. Será Rosa? Já não tem tanta certeza. Não há qualquer lampejo de reconhecimento, nenhuma confirmação de que o conhece, de que foram em tempos idos o amor da vida um do outro. Ele cambaleia, começa a abrandar até parar, observando o comboio a afastar-se enquanto ela lhe devolve o olhar fixo: de um estranho para outro.

2

 

 

 

 

 

Cambridge, trimestre de verão, 2012

 

Sei que não é suposto estar a escrever isto (não devia haver nenhum registo, nenhum sinal de fumo no céu de Fenland, como diria a minha terapeuta), mas tive um diário a vida toda e preciso de falar com alguém.

Saí novamente com a malta do teatro. Parece que consegui o papel de Gina Ekdal, se o quiser. Estou sempre a dizer a mim própria que estou a fazer isto tudo pelo Pai.

Bom, não exatamente tudo. Tomei uma pastilha quando chegámos ao pub. As velas nas mesas ardiam como crucifixos (belos, talvez proféticos), mas não foi o que esperava. Acho que beijei o Sam, o encenador, e possivelmente a Beth, que faz de Mrs. Sørby. Teria beijado o elenco todo, se a Ellie não tivesse intervindo.

Não vou voltar a experimentar, mas estou determinada a aproveitar cada pitada do tempo que me resta aqui. Sei que esta malta, esta vida, não sou eu, mas é uma melhoria relativamente aos dois primeiros trimestres («Festa de S. Miguel» e «Quaresma», como o Pai insistia em chamar-lhes; eu vou continuar a usar as estações.) É tão fácil cair no cenário errado, mais difícil é libertar-se sem ofender ninguém nem aparentar ter a mania da superioridade.

Depois do pub fomos comer qualquer coisa, embora eu não estivesse com fome. Não sei onde foi, um sítio qualquer lá em baixo, junto ao rio. Ainda estava bastante bêbada, até chegar a hora de pagar.

E foi aí que o conheci. Porquê agora, com tão pouco tempo restante? Porque não no primeiro trimestre?

Ele estava a contornar a mesa e a receber o pagamento de cada um de nós. Uma conta, dividida de forma desigual por catorze, dá para acreditar? Mas o tipo nunca se queixou, nem sequer quando chegou a minha vez de pagar e o cartão não funcionou.

— A máquina está com problemas — disse ele, tão suavemente que mal o consegui ouvir. — Não apanha rede aqui. É melhor vir até à caixa.

— Desculpe? — disse eu, olhando para cima. Não sou baixa, mas o tipo era alto, um homem grande como um urso, com um queixo barbeado e um suave sotaque irlandês.

Inclinou-se para baixo, assegurando-se de que mais ninguém conseguia ouvir. Tinha um hálito quente e cheirava a limpo. A sândalo, talvez.

— É que precisamos de passar novamente o seu cartão, mais perto da caixa.

Houve qualquer coisa no olhar que me lançou, no sorriso paternal e tranquilizador, que fez com que me levantasse da mesa e o seguisse até à caixa. E gostei das suas mãos grandes e arranjadas, com um anel discreto no polegar. Mas não era, de todo, o meu tipo. A linha larga do maxilar juntava-se de uma forma demasiado afiada no queixo, os lábios finos.

Só quando estávamos suficientemente longe para que mais ninguém nos ouvisse se virou para mim e disse, numa voz mais alta, que o meu cartão tinha sido recusado.

— Fui aconselhado a tirar-te o cartão e cortá-lo. — Fez um sorriso largo. O seu rosto grande iluminou-se e ganhou melhores proporções quando o fez: o queixo suavizou-se e as maçãs do rosto ergueram-se.

— O que é que fazemos agora? — perguntei, satisfeita pelo facto de parecer que estávamos nisto juntos. Não tinha um tostão desde o dia em que tinha chegado.

Olhou para baixo, na minha direção, apercebendo-se, pela primeira vez penso eu, de como eu estava realmente bêbada. E, depois, olhou de soslaio para a mesa.

— O elenco? — disse ele.

— Como é que adivinhaste?

— Não há gorjetas.

— Talvez deixem alguma coisa em dinheiro — disse eu, subitamente numa atitude defensiva face aos meus novos amigos.

— Seria a primeira vez.

— Não és um ator, então — disse eu.

— Não. Não sou um a-tor.

Fez-me sentir vergonha da palavra, rimando a segunda sílaba com «clamor».

— Então, o que é que fazes quando não estás a ser mal-educado em relação aos meus amigos? — perguntei.

— Sou estudante.

— Aqui? Em Cambridge?

Foi uma pergunta estúpida e condescendente e ele poupou-me a uma resposta.

— Também escrevo umas coisas.

— Ótimo. — Mas não o estava a ouvir. A minha mente já estava outra vez focada na minha parte da conta e no facto de não ter forma de a pagar. Não quero que ninguém do elenco saiba que não tenho um tostão, mesmo que isso combine com a profissão. E não lhes posso contar que as minhas preocupações financeiras (todas as minhas preocupações) em breve terminarão. Não posso contar a ninguém.

— Há dinheiro suficiente na caixa das gorjetas, de outros jantares, para cobrir o que falta — disse ele.

Por um momento, fiquei sem palavras.

— E por que motivo farias uma coisa dessas?

— Porque acho que é a primeira vez que sais com estas pessoas e estás a tentar impressioná-las. Não poder pagar pode custar-te o papel. E eu já estou ansioso por ir ver a peça. Ibsen é bastante bom, sabes.

Olhámos um para o outro em silêncio. Ele agarrou-me pelo cotovelo, pois eu estava a baloiçar demasiado. Estava a começar a sentir-me enjoada.

— Estás bem? — perguntou.

— Podes levar-me a casa? — O tom da minha voz, arrastado, suplicante, soou mal, como se estivesse a ouvir outra pessoa a falar.

— Só saio daqui a uma hora. — Estava a olhar para a Ellie, que se tinha aproximado. — Acho que a sua amiga precisa de apanhar ar — disse-lhe.

— A Rosa já pagou? — perguntou a Ellie.

— Está tudo tratado. — Devolveu-me o cartão.

E não consigo lembrar-me de mais nada. Nem sequer fiquei a saber o nome dele. Restam-me apenas as primeiras impressões: um homem sem pressa, que vive a vida a um ritmo muito próprio e calculado; tempo eficiente, como o Pai costumava dizer. E debaixo daquele exterior calmo, haverá uma impetuosidade controlada, paixão contida? Ou isso será simplesmente um desejo meu?

Agora, sinto-me envergonhada. Nenhum de nós tinha dinheiro, mas ali estava ele, um escritor irlandês num restaurante, sem queixas, a servir estudantes avarentos para pagar as contas, e eu sem conseguir pagar, com o limite do cartão de crédito ultrapassado.

Parte de mim (uma grande parte) espera voltar a vê-lo, mas não quero que se envolva no que está para vir. Ainda tenho medo de ter tomado a decisão errada, mas não consigo ver outra saída.

3

 

 

 

 

 

Jar está sentado à secretária a ler as desculpas dos colegas que, tal como ele, não conseguiram estar presentes na conferência diária às 9h30 da manhã. Todos os dias, fica espantado com o desplante das explicações das outras pessoas. Ontem, Tamsin enviou um e-mail ao grupo para dizer que chegaria atrasada, depois de os bombeiros terem tido de a resgatar da sua casa de banho. Foi uma deixa para inúmeras piadas sobre as manobras de transporte e elevação dos bombeiros, quando ela finalmente chegou, de rosto corado e blusa mal abotoada.

Os pretextos de hoje são mais prosaicos. A máquina de lavar de Ben inundou o chão da cozinha; Clive culpa uma vaca na linha pelo atraso do comboio proveniente de Hertfordshire; e isto de Jasmine: «Saí de casa sem carteira, fui buscá-la agora, chego atrasada». Maria, a grande dame do departamento, está em melhor forma: «O marido comeu a marmita do almoço das crianças, tenho de preparar outra». Nada mau, pensa Jar, mas nada que rivalize com a desculpa inigualável de Carl no último verão: «Estou a recuperar depois do Glastonbury. Talvez chegue uns dias atrasado».

Carl é o único verdadeiro aliado de Jar no escritório, disponível para uma cerveja depois do trabalho, continuamente alegre, sempre com os auscultadores à volta do pescoço. (Se estiver a fazer a ronda do chá, dá a volta ao escritório sinalizando um enorme C com as mãos.) É um MC de jungle quando não está a gerir o canal de música do website dedicado às artes para o qual ambos trabalham, dizendo a toda a gente que o quiser ouvir que o jungle não é retro, nunca passou de moda e é mais popular do que nunca. Também tem um conhecimento doentio sobre computadores, esquecendo-se frequentemente que Jar não tem qualquer interesse pelo desenvolvimento de aplicações ou paradigmas de programação.

Em Paddington, Jar ponderara enviar um e-mail para o escritório para explicar o atraso, mas não sabia bem como reagiriam: «Acabei de ver a minha namorada da faculdade que se suicidou há cinco anos. Toda a gente me diz que estou a imaginar coisas, que tenho de andar para a frente, mas sei que ela está viva, de alguma forma, nalgum lugar, e nunca vou parar de procurar até a encontrar. Ela não estava preparada para morrer».

Contou tudo a Carl, mas não aos outros. Sabe o que eles pensam. O que faz um jovem escritor irlandês premiado (a sua coleção inaugural de contos foi um sucesso entre a crítica, embora não comercial) no sétimo círculo do inferno de escritórios em Angel, tentando alcançar números de tráfego web através da escrita de clickbaits sobre Miley Cyrus? Foi lamentável que a primeira peça que lhe tivessem pedido para escrever tivesse sido sobre o bloqueio de escritor: dez autores que tinham perdido o seu talento. Por vezes, interroga-se se alguma vez o teve.

Nos últimos meses, viu Rosa cada vez com mais frequência: ao volante de carros que passavam, no pub, no autocarro Número 24 (nos lugares da frente, onde se sentavam sempre que estavam em Londres, a ir para Camden). As aparições têm um nome específico, de acordo com o seu médico de família em Galway: «alucinações de luto».

O seu pai tem outras ideias, falando excitadamente da spéirbhean, a mulher celestial que costumava aparecer em poemas visionários irlandeses. A mãe repreende-o, acusando-o de ser um insensível num momento como aquele, mas Jar não se importa. Sente uma forte ligação ao pai.

Passou muito tempo em casa, em Galway City, logo após a morte de Rosa, tentando compreender o que acontecera. O pai é proprietário de um bar no Bairro Latino. Ficavam acordados até tarde, falavam dos avistamentos, particularmente de um, na costa de Connemara. (Só ele falava, o pai ouvia.) Sabe que alguns deles são falsos alarmes, mas outros, os que não consegue pôr à prova…

— Parece que estás às portas da morte, mano — diz Carl, afundando-se na cadeira, que assobia. — Acabaste de ver um fantasma?

Jar não diz nada enquanto liga e acede ao seu computador.

— Meu Deus, desculpa, amigo — diz Carl, remexendo nalguns CD promocionais na sua secretária. — Pensei…

— Comprei-te um café — interrompe Jar, passando-lhe um café com leite. Não quer prolongar o embaraço do amigo. Carl tem um pouco de excesso de peso, cara de bebé, cabelo desgrenhado, com rastas, e um sorriso de querubim, e tem o hábito irritante de abreviar as palavras nos seus e-mails («infelzm» para infelizmente) e de dizer coisas como «o ai-jesus», «bem-haja» e «está tudo», mas tem menos malícia do que qualquer outra pessoa que Jar conheça.

— Obrigado. — Há uma pausa incómoda. — Onde é que aconteceu? — pergunta Carl.

— Vou fazer o doodle de hoje — diz Jar, ignorando-o.

— Tens a certeza?

— É Ibsen. É um velho amigo meu.

Revezam-se para escrever histórias sobre o doodle do dia do Google. É suposto entrarem na página do Google na Austrália na noite anterior, conseguindo uma vantagem de onze horas sobre o mundo adormecido, mas muitas vezes esquecem-se. As histórias são enterradas no website, onde ninguém as pode ver, mas dão um enorme impulso aos números de tráfego, pois as pessoas clicam indolentemente no adornado logotipo do dia do motor de busca.

Meia hora mais tarde, depois de ter escrito muito mais do que era necessário sobre Ibsen, principalmente acerca da personagem de Gina Ekdal em O pato selvagem e o extraordinário desempenho de uma estudante em Cambridge cinco anos antes, está na rua abaixo do escritório, com Carl, a abrigar-se da chuva num beco junto à entrada que cheira à cerveja da noite anterior e a bem pior do que isso.

— Um dia tipicamente irlandês[1] — diz Jar, preenchendo o silêncio. Consegue aperceber-se de que Carl se está a preparar para puxar um assunto incómodo e olha em redor em busca de uma distração. — Devorador de pizza, às quatro horas.

— Onde? — pergunta Carl.

Jar aponta com a cabeça para o outro lado da estrada, na direção de um homem que caminha sozinho pelo passeio, falando para uma extremidade do telemóvel, que segura horizontalmente à frente da boca, como uma fatia de pizza. Carl e Jar observam-no, a sorrir. Ambos gostam de reparar nas pessoas que falam ao telefone de formas engraçadas: a pessoa que telefona furtivamente, sussurrando atrás de uma mão em concha; a pessoa que move o telefone para trás e para a frente entre o ouvido e a boca. Contudo, o devorador de pizza é um dos seus preferidos.

— Sei que não é da minha conta — diz Carl, pegando num cigarro enquanto o homem desaparece na multidão. Segura o cigarro entre o polegar roliço e o indicador, como uma criança a escrever com giz. — Mas talvez devesses pensar em consultar alguém, sabes, sobre a Rosa.

Jar olha em frente, com as mãos profundamente enfiadas no casaco de camurça, observando o tráfego a avançar pela rua, por entre a chuva e a neblina. Gostava de também ter um cigarro, mas está a tentar deixar de fumar. Mais uma vez. Rosa nunca fumou. Foi para baixo para fazer companhia a Carl, para lhe dar a entender que não havia qualquer desconforto pelo que tinha acontecido antes. E para se esquivar à conferência das 11h.

— Acho que encontrei alguém que te podia ajudar — continua Carl. — É uma terapeuta especializada no luto.

— Tens andado com agentes funerárias outra vez? — pergunta Jar, recordando a recente e malfadada experiência de Carl com «encontros amorosos em funerais». Baseado no princípio de que as feromonas tendem a andar à solta nos funerais («há muita dor na luxúria e muita luxúria na dor»), Carl penetrara furtivamente nalguns velórios na esperança de encontrar o amor, não necessariamente com a viúva, mas com uma mulher atraente e confusa, vestida de preto.

— Ela gostou de mim e fez-me um swipe para a direita.

Jar olhou para o amigo surpreendido.

— Pronto, não fez nada. Está a ajudar-me com uma história.

— Sobre o Tinder?

— Pensou que eu pudesse estar interessado numa nova investigação que estão a fazer sobre os efeitos benéficos da música nas salas de espera dos psiquiatras. Passando um pouco de jungle antigo, as pessoas abrem-se mais.

— Atiram-se pela janela, diz antes assim. — Jar faz uma pausa. — Depois da cena desta manhã estou mais convencido do que nunca de que a Rosa está viva — diz ele, tirando o cigarro a Carl e inalando profundamente.

— Mas não era ela, pois não?

— Podia ser, é essa a questão.

Estão de pé em silêncio, a observar a chuva. A esperança é uma coisa frágil e privada, pensa Jar, facilmente extinguível por outros. Inala novamente o cigarro de Carl e devolve-lho. Não pode culpá-lo por estar cético. Estão prestes a encaminhar-se de volta para o escritório quando o olhar de Jar é atraído por um movimento, um homem alto a sentar-se junto à janela do Starbucks, do outro lado da rua. Casaco North Face preto, colarinho para cima, cabelo castanho vulgar, traços indistintos. Sem rosto e olvidável, salvo por ser a terceira vez que Jar o via nos últimos dois dias.

— Reconheces aquele homem? — indaga Jar, apontando com a cabeça na direção do Starbucks.

— Não posso dizer que reconheça.

— Ia jurar que estava no pub ontem à noite. E no autocarro ontem.

— Andam a seguir-te outra vez?

Jar faz um gesto afirmativo com a cabeça, esperando a troça do amigo. Já tinha mencionado anteriormente a Carl aquela sensação de estar a ser observado.

— Sabias que uma de cada três pessoas sofre de paranoia? — diz Carl.

— Só uma?

— As outras duas estão a observá-la.

Jar quer dar uma gargalhada simbólica, para mostrar que está bem, que são tudo coisas da sua imaginação, mas não consegue.

— O que eu senti quando a vi nas escadas rolantes… — Faz uma pausa, permitindo-se olhar de relance para o homem mais uma vez. — A Rosa anda por aí algures, Carl, de certeza que anda. À procura de uma forma de voltar.

 

 


[1] «Soft old days» no original, uma expressão utilizada na Irlanda, principalmente pelas gerações mais velhas, para se referir ao tempo típico na Irlanda, com chuva suave a cair. (N.T.)

4

 

 

 

 

 

Cambridge, trimestre de outono, 2011

 

Passaram duas semanas desde que aqui cheguei e sinto a falta do Pai mais do que nunca. Pensei que a mudança de ares, um começo novo, romperia o ciclo, mas não o fez. Nem sequer a confusão da Semana do Caloiro consegue mascarar o enorme arcaboiço da minha dor. Éramos um dueto, sal e pimenta, Morecambe e Wise (o programa favorito dele), mais unidos do que qualquer dos meus amigos parece ser com os pais. O destino juntou-nos, sem que tivéssemos voto na matéria, as coisas eram simplesmente assim.

Fiquei tão zangada ontem à noite no The Pickerel quando as pessoas começaram a dizer mal dos pais. Depois, a rapariga do quarto ao lado do meu, que também estuda Inglês, a Josie lerda de Jersey, perguntou como era comigo. Claro que o ambiente mudou quando expliquei, foi quase como se houvesse uma pausa no zumbido ébrio do pub, ninguém tinha a certeza do que dizer, para onde olhar. Por um momento, vi-me a partir de cima, interroguei-me se será assim que o Pai vê as coisas atualmente.

Há cinco minutos, quando acordei com a luz do sol a fluir através destas cortinas de faculdade baratas, ele ainda estava vivo e íamos almoçar fora ao Grantchester. Estava a planear contar-lhe como tinham sido as minhas primeiras semanas em Cambridge, os clubes a que me juntei, as pessoas que conheci. E então lembrei-me.

O Pai costumava falar constantemente sobre este lugar. Só viemos aqui juntos uma vez, no verão, uma semana antes de ele morrer (ainda parece tão estranho escrever isto). Nesse dia, estava a portar-se da forma irrequieta habitual. O Pai tinha um entusiasmo incrível pela vida, uma inteligência enérgica. Se tivéssemos tido essa oportunidade, ter-me-ia mostrado Cambridge na sua bicicleta desdobrável (a que utilizava para ir para o trabalho), ou teríamos corrido (ele tinha o físico definido de um corredor de montanha). Em vez disso, caminhámos, de forma rítmica, eu com dificuldade para o acompanhar.

Começou a mostrar-me a faculdade que continuava a chamar sua, e que no tempo dele era só para homens. Dá para imaginar? É reconfortante saber que esteve aqui antes de mim, que percorreu os mesmos caminhos, que atravessou os mesmos pátios sagrados. Depois, levou-me a dar um passeio de barco, disse que tinha de se fazer isso aqui. Pelo menos não tinha um chapéu de palha de barqueiro.

Invulgarmente, houve momentos de calma nesse dia e explicou que as coisas estavam difíceis no trabalho. Nunca falava muito sobre isso e normalmente eu não perguntava. Sabia apenas que o trabalho dele nos tinha levado a várias embaixadas em todo o mundo, principalmente no sul da Ásia, e que trabalhava na Unidade Política do Ministério dos Negócios Estrangeiros, enviando relatórios para Londres que, gracejava ele, ninguém lia.

Nos dois últimos anos tinha trabalhado em Londres. Não tenho a certeza de ter sido uma promoção, mas, mesmo assim, continuava a viajar ocasionalmente. Eu já tinha idade suficiente para tomar conta de mim quando ele estava fora. E idade suficiente para o acompanhar a eventos de trabalho quando regressava, incluindo uma receção nos jardins do Palácio de Buckingham no ano passado. Vestiu o mesmo blazer que tinha vestido naquele dia no Rio Cam.

— Tenho de ir à Índia — disse ele, agachando-se desnecessariamente quando passámos debaixo da ponte Clare.

— Sorte a tua.

Arrependi-me do tom. Sabia que ele não gostava de estar ausente durante períodos longos.

— Ladakh — acrescentou, a sorrir.

Ele esperava que, de alguma forma, isso suavizasse o golpe. Fomos muito felizes quando viajámos para lá uma vez. Estivemos em Leh, onde frequentámos os cafés hippies na Changspa Road, observando jovens israelitas a entrar na cidade montados em motas Enfield Bullets, enquanto tentavam encontrar alguma consolação nas montanhas depois do serviço militar. É, possivelmente, o meu sítio preferido no mundo inteiro. Um dia, quero ter um trabalho que me permita viajar como o Pai.

Observei-o a acenar com a cabeça para um barco que passava por nós na outra direção. Dois pais orgulhosos sentados à frente, com o filho pródigo a conduzi-los no passeio por Backs. Tenho a certeza de que a carreira do meu pai foi prejudicada pela sua insistência em estar presente na vida da sua única filha. Basicamente criou-me sozinho, com a ajuda de uma ou duas amas indianas pelo caminho.

— Promete-me que vais experimentar tudo quando cá estiveres — disse ele.

Lembro-me de não ter gostado do tom dele, da sugestão de que talvez ainda estivesse ausente quando eu fosse «para cima» para Cambridge, como ele insistia em dizer, mas talvez a visão em retrospetiva esteja a distorcer a minha recordação. Porém, naquela tarde solarenga, ele não estava nele; estava mais reservado, dizia menos piadas.

— Inscreve-te em todos os clubes e sociedades — continuou, com uma falsa frivolidade na voz. — Dá uma oportunidade a tudo, durante toda a maldita vida aqui. Lembro-me de me ter inscrito nos Trabalhistas, no SDP e nos Conservadores, tudo na mesma noite.

— É por isso que és tão bom nisto? Porque te juntaste a um clube de remo?

— Aprendi a andar de barco para impressionar a tua mãe. A primeira vez que a levei a sair, o remo ficou preso na lama, o que é fácil de acontecer. Simplesmente não me devia ter agarrado a ele quando o barco se começou a afastar.

— Pai! — exclamei eu com exasperação fingida. Conseguia ver que a recordação o deixava feliz e não triste, com um sorriso a enrugar-lhe o canto da boca, o lado que usava sempre para sussurrar coisas patetas quando era suposto estarmos sérios. «Pronuncia-se “Alteza”, como em “bicheza”, e lembra-te de fazer uma vénia», tinha dito momentos antes de eu me baloiçar à frente da Rainha com uns saltos altos que se afundavam no relvado do Palácio de Buckingham.

Custa-me imaginar ser capaz de fazer isso: sorrir ao pensar nele. Neste momento, só tenho vontade de me enroscar nesta cama estreita da faculdade e morrer.

5

 

 

 

 

 

Jar sabe que alguma coisa está errada assim que sai do elevador. A porta do apartamento está aberta, com um triângulo aguçado de luz a cortar a escuridão do patamar. Sente falta de ar.

— Espera aqui — diz a Yolande, que estava a beijar no elevador segundos antes. Tinham-se conhecido num pub no topo da Brick Lane, onde ele para muitas vezes depois do trabalho. Nos últimos meses, tem desenvolvido um padrão. Depois de uma «alucinação de luto», como agora sabe que deve chamar ao seu avistamento de Rosa dessa manhã, procura o conforto de uma estranha. Uma tentativa insensata de seguir em frente com a sua vida: de alguma forma, as estranhas fazem-no sentir-se menos infiel à memória dela.

Empurra a porta para a abrir totalmente, mas esta emperra contra alguma coisa. Forçando-a, entra, com o sangue a palpitar nas têmporas. O apartamento (uma divisão grande, com uma kitchenette na extremidade mais afastada, uma cama na outra) fora totalmente revirado, o chão coberto de livros tirados das prateleiras que se alinham ao longo de cada centímetro das paredes. Algumas das prateleiras foram puxadas e inclinam-se flacidamente para a frente como árvores arrancadas por uma tempestade. Fecha os olhos, tentando racionalizar o que aconteceu.

Os assaltos não são invulgares na sua torre de apartamentos, sendo a mais recente série de invasões domésticas atribuída aos viciados em crack a norte da Hackney Road. Na semana anterior, roubaram o computador a Nic Farah, um fotógrafo que vive no andar de baixo. E uma televisão e aparelhagem foram furtadas de um apartamento no décimo sexto, quatro andares abaixo do dele, alguns dias antes. Por precaução, mas sem grande convicção, Jar tinha escondido a sua guitarra de doze cordas debaixo da cama.

Começa a caminhar entre a enchente de livros no chão, agarrando no exemplar do pai de More Than a Game (Mais do que um jogo) de Con Houlihan. Instintivamente, sabe que não falta nenhum livro. Não era disso que eles andavam à procura, quem quer que «eles» fossem. Dobra-se junto à cama. O estojo da guitarra continua ali. Está prestes a levantar-se, mas decide puxar para fora o estojo danificado. Qualquer coisa para se distrair, parar os pensamentos que se sucedem uns aos outros na sua cabeça. Sossegado pelo peso do estojo, abre-o em cima da cama. A guitarra está a salvo, intacta, mais uma prova irrefutável de que não se trata de um assalto normal. Guitarras boas como a sua são bastante fáceis de vender.

— Calculo que normalmente não seja assim — diz Yolande, de pé à entrada da porta. A voz é refinada. Jar fica chocado pela facilidade com que se esqueceu dela. — Chamo a polícia?

Devia ter-se desculpado no bar e ido embora, não a ter trazido até aqui. Tecnicamente, ela nem sequer é uma estranha. Despertara a sua atenção da última vez que fora visitar o editor, ao passar por ele com uma caixa de livros para serem assinados por um autor mais em voga do que ele alguma vez estaria. E depois, lá estava ela no bar esta noite. Teria sido má educação não se aproximar e falar com ela.

— Não — diz Jar. Dedilha um acorde impaciente na guitarra antes de a arrumar. — Não levaram nada.

— Como é que sabes?

— Porque não há nada para levar. — Jar fecha o estojo da guitarra com um estalido e deambula pela sala.

— Tantos livros — diz ela, observando-o.

E mais dois chegam amanhã, pensa Jar: Young Skins (Peles jovens), de Colin Barrett, para compensar a história desta semana sobre Jennifer Lawrence e The Green Road (A estrada verde) de Anne Enright por causa de um questionário sobre os One Direction. Tentativas fúteis de manter algum tipo de equilíbrio cultural na sua vida. Está a ficar sem espaço.

— Deixa-me ajudar-te a arrumar — diz Yolande, agora ao seu lado, pousando-lhe uma mão no ombro.

Jar encolhe-se perante o contacto. Ela é demasiado boa para estar envolvida na sua vida. Enquanto a observa a pegar num livro, algo lhe desperta a atenção no meio da confusão. É uma fotografia de Rosa. E não devia estar ali. Ele não guarda nada no apartamento que o recorde dela, absolutamente nenhum vestígio. É uma regra dele. Alguém teria deixado a fotografia ali, como cartão-de-visita? Então, lembra-se de que usava a fotografia como marcador de livros quando estava em Cambridge. Devia ter caído de um livro.

Inclina-se para pegar nela, fitando o seu rosto. Rosa sempre soube como captar a sua atenção. Adora o ar estudioso que tem na fotografia: à secretária, sem olhar para a máquina, a roer uma caneta. Viu tantas imagens nos últimos cinco anos que o preocupa não conseguir recordar-se de como ela realmente era, com a memória moldada por fotografias.

— É melhor ir para casa — diz Yolande, olhando-o por cima do ombro. A voz sobressalta-o. Há quanto tempo estará a fitar a fotografia?

Sabe que lhe deve um pedido de desculpas, pelo menos uma explicação, mas não sabe por onde começar.

— Está bem — diz, desviando-se do olhar acusador de Rosa: mais um encontro casual que trataste miseravelmente.

Jar olha para Yolande durante um instante. Numa noite diferente, noutra vida, estariam nesta altura a fazer amor lânguido e ébrio, tendo caído na cama depois de ele a ter impressionado com uma balada irlandesa à guitarra, uma das músicas que tantas vezes costumava ouvir no seu antigo quarto, com a voz do pai a flutuar para cima através das tábuas do soalho, vinda do bar familiar em Galway.

— Desculpa. Desço contigo, chamo um táxi?

— Não é preciso — diz ela. — A sério.

Mas ele insiste e descem juntos no elevador, em silêncio.

— Amava-la muito, não era? — diz ela, enquanto o elevador abana e se detém no rés-do-chão. — Ela teve sorte em ter sabido disso.

Já na rua, é ela que chama o táxi, mas Jar espera até ela entrar e dirigir-se para a noite (para Mile End, acha que disse) antes de caminhar de volta ao seu bloco de apartamentos com uma nova determinação, ou será medo? O que aconteceu nessa noite no seu apartamento significa que alguém (quem, ainda não tem a certeza) está a começar a levá-lo a sério. Alguém que quer saber quanto descobriu sobre Rosa. E, possivelmente, quer também tentar travá-lo. A porta de uma carrinha fecha-se à distância. Prime o botão para o vigésimo andar e volta a sair do elevador enquanto as portas deslizam para se fecharem. Sem esperar que o elevador vazio suba ruidosamente na noite, dirige-se para a saída das traseiras do bloco de apartamentos e corta por outra propriedade para uma fileira de arrecadações.

Aprendeu ao longo dos anos que a paranoia é uma doença corrosiva, devorando qual ácido as extremidades da sua mente racional, mas permite-se ter uma certeza nessa noite: o seu apartamento não foi visitado por assaltantes. O caos era demasiado coreografado, demasiado metódico para viciados em crack. Nos últimos dias, tem tido a sensação de estar a ser vigiado, seguido do trabalho até casa, observado em cafés, uma sensação que até ao momento tem conseguido ignorar. Nessa noite tudo muda.

Destranca a porta lateral da arrecadação e entra, acendendo a faixa de luz fluorescente. Agora, sente que as suas ações são mais válidas. Não está à espera que esse sítio também tenha sido assaltado, mas, ainda assim, é um alívio encontrá-lo exatamente como o deixou ontem. Senta-se ao computador, acendendo-o, enquanto percorre com o olhar o espaço pequeno e frio. Sente sempre que ali Rosa está mais perto.

Três cartas náuticas da costa norte de Norfolk, coladas umas às outras, dominam uma parede de tijolos de cimento. Nos mapas, foram desenhadas setas a marcador vermelho, indicando a direção das correntes; praias tão ocidentais como Burnham Deepdale e Hunstanton estavam assinaladas com um círculo. Perto das cartas, há um mapa de Cromer da Ordnance Survey. Linhas verdes escritas a caneta conduzem a fotografias e imagens fixas retiradas de gravações de câmaras de vigilância que estão penduradas num painel adjacente.

A parede atrás da mesa do computador é uma composição de fotografias. Do lado esquerdo, há imagens de Rosa da universidade. À direita, estão os avistamentos não confirmados desde a sua morte, alguns deles excluídos com uma cruz. Em Paddington, não tirou uma fotografia da mulher que pensou ser Rosa. Em vez disso, prende na parede uma fotografia da estação, desenha, ao lado, um ponto de interrogação com um marcador vermelho e acrescenta a data.

Guarda tudo o que tem a ver com ela ali, num esforço para preservar algum tipo de normalidade no resto da sua vida. Os intermináveis pedidos de cumprimento da Lei de Liberdade de Informação enviados para St. Matthew’s (a faculdade dela), para a polícia, para o hospital, bem como a correspondência com o médico legista (que não está submetido e essa lei). Há também as coisas mais pessoais: uma camisa de noite Margaret Howell (comprada pela tia quando entrara em Cambridge), o seu perfume preferido (um aroma que encontrara num mercado de especiarias em Istambul), um dos postais engraçados que ela enfiara sorrateiramente debaixo da sua porta na faculdade.

Quando as pessoas visitam o apartamento, acham que ele prosseguiu com a sua vida. Gosta disso, quer que as pessoas acreditem que a esqueceu. Ninguém precisa de saber que é ali, numa arrecadação cheia de correntes de ar, que ele se sente mais vivo, rodeado de imagens da mulher que amou mais do que achava ser possível amar outro ser humano. Se alguém ali entrasse agora, confundi-lo-iam com um acossador. Em certa medida é isso que é, salvo por a mulher que persegue ter morrido há cinco anos, saltando para a morte numa noite tempestuosa em Cromer, a 210 km de distância, na costa norte de Norfolk.

Examina os seus e-mails pessoais. O pai enviou-lhe algumas linhas sobre hurling[2] no fim de semana e um link para a crónica de um jogo no Connacht Tribune. O primo de Jar jogou. «O Conor esteve a léguas de marcar. Vem visitar-nos em breve, Pai». Jar sorri, enquanto se prepara para passar para a conta de e-mail do trabalho, mas outra mensagem entre o lixo eletrónico capta a sua atenção.

É de Amy, a tia de Rosa, uma restauradora de quadros que vive em Cromer. Amy e Rosa sempre tinham sido próximas, mas o vínculo entre elas tornou-se ainda mais forte depois da morte do pai de Rosa. A sobrinha subia frequentemente até à cidade costeira para passar o fim de semana, agradecendo a oportunidade de se afastar do caldeirão que era a vida em Cambridge.

Jar também era convidado para ir com ela, mas nem sempre era fácil aceitar. Amy ostenta uma dolorosa semelhança física com a sobrinha. Também passara grande parte da vida medicada, a entrar e sair da depressão numa verdadeira montanha russa. No entanto, a disposição de Amy pareciam melhorar sempre que Rosa estava com ela. Sentavam-se calmamente à luz do sol filtrada da sala de estar, onde Amy pintava, com hena, padrões intrincados nos braços e mãos de Rosa, enquanto conversavam sobre o seu pai.

Jar não a culpa pelo que aconteceu depois e manteve o contacto com ela desde essa altura, e a relação entre eles, tal como a de Amy e Rosa, acabou por desabrochar no luto mútuo. Amy é uma aliada, igualmente paranoica, a única pessoa que Jar conhece que não acredita que Rosa está morta. Ela não tem qualquer explicação ou teoria, apenas um «sexto sentido», como ela lhe chama, o que torna o tom otimista do seu e-mail dessa noite ainda mais intrigante:

 

Jar, tenho tentado ligar-te, mas não consegui falar contigo. Encontrámos uma coisa no computador que te pode interessar. Tem a ver com a Rosa. Estou por aqui a semana toda se quiseres vir visitar-me. Liga-me.

 

Jar olha de relance para o relógio e pondera ligar a Amy; é tarde, mas sabe que ela nunca dorme bem. Então, lembra-se que o seu telefone está a carregar no apartamento. Decide ligar-lhe logo de manhã, do comboio para Norfolk. Depois do assalto dessa noite, pode estar a ficar sem tempo.

 

 


[2] Desporto nacional irlandês, semelhante ao hóquei. (N.T.)