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Ameaça entre as sombras

 

HarperCollins 200 anos. Desde 1817.

 

Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

Ameaça entre as sombras

Título original: Troublemaker

© 2016, Linda Howington

© 2017, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Tradutor: Fátima Tomás da Silva

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a autorização de HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

Imagens de capa: Dreamstime.com

 

ISBN: 978-84-9139-130-2

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

 

Ameaça entre as sombras

Créditos

Sumário

Dedicatoria

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Capítulo 26

Capítulo 27

 

 

 

 

 

 

Para todos os meus queridos cães,
que enriqueceram a minha vida

Capítulo 1

 

 

 

 

 

Era um daqueles dias luminosos do princípio de março, que faziam pensar que a primavera já tinha chegado, apesar de o maldito inverno ainda não ter retirado as suas garras da cidade. No entanto, não era de estranhar que Morgan Yancy não soubesse em que época do ano vivia. Tinha de parar para pensar. Encontrava-se no hemisfério norte ou no sul? O trabalho obrigava-o a viajar quase sem aviso prévio para os lugares mais recônditos e infernais do mundo. Não era de estranhar que do Ártico se dirigisse para o deserto do Iraque e depois para a América do Sul. Tudo dependia de onde o seu talento era requerido.

Há trinta e seis horas, chegara ao apartamento minúsculo a que chamava lar. Depois de dormir vinte e quatro horas seguidas, acordara para descobrir que os dias se confundiam com as noites. Não era a primeira vez e não seria a última. Ficou algum tempo acordado, comeu uns biscoitos rançosos com manteiga de amendoim, espreguiçou-se, correu mais de onze quilómetros a meio da noite, até se cansar, e voltou a ficar sem forças.

Quando acordou, era primavera. Ou era como se fosse.

Tomou um duche frio com a intenção de pôr o cérebro a trabalhar e depois rebuscou no frigorífico até encontrar uns restos de café moído, o suficiente para preparar uma cafeteira. Bastaria. Abriu um pacote de leite e cheirou-o, fez uma careta de nojo e deitou o conteúdo pelo ralo. Também encontrou um pedaço de queijo com bolor, que atirou para o lixo. Definitivamente, teria de ir às compras enquanto estivesse em casa. Conseguia sobreviver sem queijo e leite, mas as coisas poderiam tornar-se perigosas se não tivesse café. Era curioso, pois podia passar dias, até semanas, sem ele, bebia o que tivesse mais à mão, mas quando estava em casa, não passava sem café.

O sol luminoso encorajou-o a ir para o pátio, do tamanho de um selo. Com a chávena de café numa mão, deu uma olhadela em redor.

O tempo estava perfeito, suficientemente fresco para não sentir calor, para estar confortável sem casaco. Soprava uma brisa leve e no céu pairavam algumas nuvens.

Às vezes, a vida era muito difícil e não lhe dava escolha. Tinha de ir à pesca. Perderia a sua dignidade se deixasse passar um dia ideal para pescar, sem usar o barco.

Além disso, o velho Shark precisava que lhe sacudissem as teias de aranha do motor, de vez em quando. Era verdade que o reparava sempre que estava em casa, mas não o levava para navegar há cerca de cinco meses, o que, se pensasse bem, era o tempo que passara sem estar mais de um dia em casa. A equipa enfrentara uma temporada cansativa.

Tirou o telemóvel do bolso direito das calças e ligou a Kodak, o seu amigo do grupo de operações. O verdadeiro nome de Kodak era Tyler Gordon. Mas quando se tinha uma memória eidética, o que poderiam chamar-lhe senão Kodak?

Kodak atendeu a chamada num tom sonolento e não era de surpreender, visto que participara na última missão, tal como Morgan.

— Sim, o que se passa? — A voz rouca e ensonada fazia com que as palavras fossem quase ininteligíveis.

— Vou sair com o Shark. Queres vir?

— Merda! Será que nunca dormes?

— Já dormi. Dormi durante quase dois dias. Que raio estiveste a fazer?

— Não estou a falar de dormir em alguns momentos. Agora, estou a dormir. Ou, pelo menos, estava — ouviu-se um bocejo enorme do outro lado da linha. — Diverte-te, amigo, mesmo que não esteja lá contigo. Durante quanto tempo estarás fora?

— Certamente, até ao anoitecer.

Morgan não se surpreendeu com a reação dele. Kodak parecia um cão com o cio. Preferia ter sexo, a encher a barriga com uma refeição decente. E não podia dizer que não pensara o mesmo, mas teria de esperar até comer, uma questão em que não progredira muito.

— Desta vez, passo — outro bocejo chegou aos ouvidos de Morgan. — Ligo-te depois — e, sem dizer mais nada, Kodak desligou.

Morgan encolheu os ombros e guardou novamente o telemóvel no bolso. Aparentemente, ia passar o dia a pescar, sozinho. Não se importava. Na verdade, preferia que fosse assim, quase sempre. O sol, o vento, a água, a abençoada solidão, era ótimo quando queria «desligar» de uma missão.

Em cinco minutos, já engolira café suficiente para se pôr a caminho. Vestiu uma t-shirt, calçou as meias e umas botas, e conduziu a carrinha em direção ao porto. Tomou o pequeno-almoço num lugar de refeições rápidas, mas, na verdade, quase todos os dias se alimentava de comida rápida. Além disso, na sua opinião, os Estados Unidos da América possuíam a melhor comida rápida que existia. Se aqueles que evitavam a gordura quisessem queixar-se realmente da comida, deveriam visitar algumas das tascas que frequentava pelo mundo. Talvez os fizesse mudar de opinião a respeito da comida rápida, saborosa.

O porto desportivo onde mantinha o Shark atracado era na zona portuária mais velha e deteriorada, rio abaixo, mas gostava porque era pequeno e lhe permitia vigiar qualquer barco novo ou veículo suspeito, na zona do estacionamento. Se fosse capaz de manter uma certa regularidade na navegação, poderia ter uma melhor vigilância, ainda que, até ao momento, nunca tivesse tido problemas e não houvesse nenhum motivo para os ter, pois tinha o costume de se manter alerta. Além disso, possuía um talento especial para detetar veículos suspeitos. Não reparou em nada estranho, embora observasse bem o estacionamento antes de parar. Não viu nenhum carro estacionado, virado para a água, nenhum carro de aluguer ou qualquer outra coisa que levantasse suspeitas.

Estacionou a carrinha, saiu e trancou-a, verificando novamente se estava trancada. Fazia parte da sua natureza. Quando se tratava de uma questão de segurança, verificava sempre tudo, duas vezes. Enquanto introduzia a chave no cadeado do portão de segurança, que bloqueava a entrada para o cais, o dono do porto, Brawley, espreitou pela guarita e gritou:

— Há quanto tempo! Está um bom dia para ir à pesca.

— Espero que sim — respondeu Morgan, elevando o tom de voz.

— Vais para a baía?

— Não me parece que vá tão longe. — A baía de Chesapeake ficava a mais de sessenta e quatro quilómetros pelo Potomac e demoraria quase todo o tempo disponível para pescar, para ir e voltar.

— Pesca um para mim! — gritou Brawley, antes de voltar a entrar na guarita.

Através da janela, Morgan viu-o a pegar no telefone, um aparelho velho, com fio, que devia estar ali desde que tinham construído o porto. Segurando o auscultador entre o ombro e a orelha, marcou um número. Já não se viam muitos telefones como aquele.

Morgan trancou o cadeado e dirigiu-se para o cais de amarração que alugara em nome de Ivan Smith, um nome que escolhera porque o divertia. Ivan era John, em russo. Afinal, estavam em Washington D.C. e, certamente, metade da população pressupunha que a outra metade usava pseudónimos.

Observou todos os barcos junto dos quais passava, procurando qualquer detalhe que não lhe fosse familiar. Bom, nem tanto os barcos, embora um porto pequeno e isolado tivesse menos movimento do que os maiores. Mas os equipamentos, por exemplo, uma instalação de rádio muito dispendiosa, um barco demasiado velho ou uma pessoa que não encaixasse naquele lugar. Que usasse calçado de sola dura, estivesse armada ou algo do género.

Nada. O lugar parecia estar em ordem. O cheiro do rio, o som da água a banhar os barcos, o ranger do cais e o suave bambolear das embarcações, tudo lhe incutia uma sensação de calma, libertando-o de parte da tensão que sentia. Certamente, nascera com o amor pela água. Certo dia, percebendo que estava a fazer alguma coisa com a mão esquerda, um colega da equipa perguntara-lhe se era ambidestro, ao que um instrutor que estava por perto respondera: «Não, é anfíbio.»

E não podia ser mais verdade. Se tivesse nascido com brânquias, teria sido feliz.

Tendo sido criado nos arredores de Pensacola, não se recordava de um só dia em que o oceano não tivesse feito parte da sua vida. O Potomac estava muito longe de ser o golfo do México, mas, desde que fosse água, bastava-lhe. Bolas! Seria feliz a remar numa canoa, num lago, pelo menos durante algum tempo, até sentir o formigueiro devido à falta de ação. Não havia nada melhor do que causar uma explosão ou receber um tiro, para que um homem experimentasse a verdadeira adrenalina.

Subiu a bordo do Shark, sentindo-se imediatamente assolado por uma sensação de familiaridade. E, visto que respeitava tanto a água como a amava, verificou os níveis do óleo e combustível, a bateria, o rádio e a bomba do porão. Também foi buscar as cordas que guardava num armário fechado e verificou-as. Por último, confirmou se tinha o telemóvel, embora soubesse que o levara, e fez o mesmo com a faca que tinha no bolso, a pistola no coldre, nas costas, a outra no tornozelo e uma terceira que guardava no fundo da caixa de ferramentas. Estava tudo em ordem.

Soltou as amarras do Shark e instalou-se no banco, para pôr o motor a trabalhar. Depois, ouviu-se o barulho familiar. Morgan pôs o boné de capitão ao contrário, saiu do cais em marcha-atrás e girou o leme, conduzindo o barco para a liberdade. As águas agitadas refletiam o céu azul, embora as profundezas fossem num tom verde sujo. À medida que o barco ganhava velocidade, sentia cada vez menos os saltos e golpes do casco contra a superfície. Quanto maior era a velocidade, maior era a suavidade.

Aquilo era vida. Se, para além disso, tivesse sorte com a pescaria, pelo menos para poder gabar-se, para fazer inveja a Kodak, o dia seria perfeito.

Apesar de, oficialmente, ter saído para ir à pesca, não conseguia ignorar os hábitos enraizados durante dezasseis anos, de treino intensivo, combates reais e o seu inato instinto selvagem. Não chegara aos trinta e quatro anos sem aprender a manter-se vivo. Observou a água com a mesma atenção com que observara o estacionamento, virando a cabeça de um lado para o outro, enquanto verificava tudo o que se passava em ambos os lados do barco. Reparou em cada um dos barcos que flutuavam na água, em quantas pessoas havia em cada um deles, no que faziam, na velocidade a que se moviam e em que direção. Prestou especial atenção a qualquer pessoa que parecesse reparar nele, algo que quase ninguém fez. O Shark não era chamativo.

Havia mais tráfego fluvial do que esperara, visto que era um dia de trabalho. Ou, pelo menos, era o que pensava. Estava quase certo de que era… Quarta-feira? Quinta-feira? Merda! Se fosse sexta-feira, perdera seriamente a noção do tempo. Depois de dar a volta ao mundo, algumas vezes, acabara numa espécie de zona de penumbra, em que o amanhã se transformava no ontem e o hoje nem sequer acontecera. Esticou uma perna e tirou o telemóvel do bolso das calças, para verificar a data no ecrã. Quinta-feira. Ainda bem. Não se enganara muito, o que, depois de uma longa missão, era mais do que podia pedir.

O Potomac era um rio muito grande, com mais de dezassete quilómetros de largura em alguns pontos, à medida que se abria para a baía de Chesapeake. Evitar outros barcos devia ser algo simples, mas tinha a sensação de que a maioria das pessoas que tinha saído para navegar desconhecia as regras de circulação no rio. Os barcos navegavam em qualquer direção, cruzando-se à frente de outros barcos, alguns salpicando outros, deliberadamente. Uns idiotas vestidos com fatos-macaco impermeáveis conduziam motas aquáticas a toda a velocidade, aparentemente, ignorando a topografia do rio e o facto de os barcos com que se cruzavam terem a opção de escolher entre bater-lhes ou evitá-los. Era incrível que ninguém tivesse sido ferido. Depois de duas situações complicadas, depois de ter renunciado à ideia de dar um tiro ao segundo piloto, Morgan rendeu-se e dirigiu-se para o centro do rio. Podiam ir à merda! Os outros que manobrassem à sua volta. Talvez ouvisse um insulto e olhares assassinos, mas, pelo menos, evitaria o perigo de danificar o Shark.

E, visto que navegava no centro do rio e não junto da margem, ao olhar para um iate de recreio, ancorado a cerca de noventa metros à sua esquerda, a sua visão apurada captou o brilho que o sol arrancou de uns cabelos grisalhos, quando o capuz da gabardina do dono foi empurrado para trás, pelo vento. Havia duas pessoas no convés, uma vestida com uma camisa azul e a outra com um casaco preto. O cabelo grisalho pareceu-lhe familiar e, impulsivamente, virou o Shark para a embarcação. Se a pessoa de cabelo grisalho fosse quem pensava que era, queria certificar-se de que estava tudo em ordem.

O casco saltava na água. Enquanto se aproximava, a pessoa que usava a camisa azul desceu para debaixo da coberta e a mulher do cabelo grisalho, porque se tratava de uma mulher, começou a acenar com a mão para o cumprimentar, fazendo gestos grandes e entusiastas, de boas-vindas. Morgan estava certo.

Depois de retribuir o cumprimento, reduziu a velocidade e parou o Shark junto do iate de recreio. Desligou o motor e baixou o motor elétrico de pesca para a água, para poder manter a posição.

— Congressista — cumprimentou Joan Kingsley, membro da Câmara dos Representantes há doze legislaturas e membro destacado do Comité de Serviços para as Forças Armadas, CSFA.

Tinham-se conhecido depois do sequestro do filho de Kingsley, na Venezuela. Morgan e a sua equipa de operações especiais, a OG, tinham sido enviados para lá, para o salvar. A congressista Kingsley insistira em agradecer pessoalmente a todos os homens envolvidos, empenhados em salvar a vida do filho. Até os convidara para um churrasco opulento. Em circunstâncias normais, não teriam podido aceitar o convite, mas, visto que Kingsley pertencia ao CSFA, tinham aberto uma exceção. Não podiam rejeitar convites das pessoas que decidiam o orçamento. Mac, chefe das equipas de ofensiva global, OG, era demasiado inteligente para fazer uma coisa dessas. De modo que dera a sua aprovação.

Para surpresa de Morgan, gostara daquela mulher. Sem dúvida, era uma política, atenta a todos os detalhes, mas também era uma mulher agradecida e genuinamente amistosa. Possuía um sorriso caloroso e aberto, e parecia tratar bem todas as pessoas, por igual. O marido, advogado em Washington D.C., era razoavelmente amável. Mas, ao contrário da congressista, a sua afabilidade era mais calculada. Bom, visto que era advogado, também não se podia esperar outra coisa.

— Não te tinha reconhecido. — Ela apoiou-se no corrimão e, olhando para baixo, sorriu. — Questionava-me quem se aproximava de nós.

— Lamento muito. Não tive intenção de a assustar.

— Não estava preocupada. — E riu-se. — Afinal, o meu barco é maior do que o teu.

— Sim, senhora, realmente é — Morgan assentiu, enquanto percorria o iate com o olhar.

Tudo parecia estar em ordem e, visto que não havia mais ninguém no convés, se houvesse algum problema ela poderia ter-lhe feito sinal, para o indicar.

Era um membro importante do Congresso e devia recorrer a mais medidas de segurança, mas não seria ele que a iria repreender. Contentava-se em saber que não havia nenhum problema. Fora essa a sua intenção.

— Sobe a bordo e come alguma coisa connosco — convidou a congressista. — Estamos a desfrutar de um dia de feriado escolar. — E, ao mesmo tempo, virou-se para o homem da camisa azul, que regressava ao convés. — Dex, está aqui o Morgan Yancy.

— Estou a ver… — Dexter Kingsley aproximou-se do corrimão, enquanto abotoava a camisa azul, por cima da t-shirt branca. Tinha um sorriso estudado e um bronzeado impecável, mais próprio de um frasco ou de uma cabina, do que do sol. — Está um bom dia para navegar. Quer subir e beber um copo? — O convite fora idêntico ao da esposa, mas, de algum modo, faltava-lhe sinceridade.

Morgan não se sentia tentado a fazê-lo. As conversas de sociedade não eram para ele, sobretudo, quando tinha a perspetiva de uma pescaria à sua frente.

— Obrigado, mas estava a dirigir-me para um dos meus lugares de pesca. Só me aproximei para cumprimentar a congressista — tirou o motor da água e, apoiando uma mão no iate, empurrou para afastar o barco e sentou-se ao leme. — Tenham um bom-dia.

— Igualmente — respondeu a congressista Kingsley, antes de se despedir com um sorriso, abanando a mão no ar.

Morgan pôs o motor a trabalhar, que ganhou vida imediatamente, e afastou-se de o iate até ter a certeza de que não chocaria violentamente com ele. Levantou o rosto contra o vento e deixou-se banhar pela mistura de água e ociosidade.

 

 

Já era noite, passava das nove e meia, quando estacionou a carrinha à frente do seu apartamento. Era tarde quando acabara de amarrar o Shark, limpá-lo e guardar a caixa das ferramentas, antes de se dirigir para casa. Fizera uma breve paragem no supermercado, para suprir as suas necessidades básicas e, com os sacos de plástico presos numa mão, saiu do veículo. Um clique do comando à distância fechou a carrinha.

Os apartamentos tinham pelo menos trinta anos e estavam dispostos em seis filas de edifícios de dois andares, de tijolo e betão. O efeito devia ser, supostamente, moderno e espaçoso, e talvez tivesse sido assim, há trinta anos. Mas, nesse momento, era apenas feio. Cada fração do andar de baixo, como a dele, dispunha de um pequeno pátio, enquanto os andares superiores tinham terraços que pareciam ser bastante inúteis, exceto para os frequentes churrascos no verão.

Os sacos de plástico batiam-lhe na coxa esquerda a cada passo que dava, recordando-lhe porque odiava ir às compras. Cada vez que ia ao supermercado, tinha de deixar uma mochila na carrinha para guardar os artigos e levá-los para casa. Mas, visto que não estava em casa com frequência suficiente para o tornar um hábito, esquecia-se sempre de o fazer. Também estivera prestes a esquecer-se de que não tinha café. Ao ver o supermercado, guinara o volante para entrar no estacionamento, recebendo várias buzinadelas dos carros que iam atrás. Não conseguia evitar. Precisava de café.

Uma coluna de betão e alguns arbustos tapavam um pouco a visão do edifício de apartamentos, irritando-o profundamente. Os proprietários não estavam dispostos a desfazer-se de uma parte da vegetação e da sombra das árvores, só porque não gostava delas. Não podia explicar-lhes que os arbustos proporcionavam um bom refúgio para as emboscadas, porque os civis não entendiam esse tipo de coisas. De modo que tinha de aguentar. Além disso, não havia grandes motivos para preocupação. A taxa de criminalidade naquela zona era muito baixa, um estímulo para as famílias jovens, que constituíam a maioria dos residentes.

Mesmo assim, os hábitos eram uma merda. Não podia simplesmente ignorar toda uma vida de treino. Para evitar virar numa esquina escondida, descreveu uma curva ampla, para entrar de frente. Tendo em conta o trânsito escasso que havia no complexo de apartamentos, quase nunca tinha de esperar que passasse um carro.

Contudo, apesar das aproximações de frente, a situação não lhe agradava. Às vezes, como nesse momento, gostava menos do que de costume, embora não soubesse dizer porquê. Também não era preciso. Era o instinto.

Morgan parou.

Às vezes… Como nesse momento.

A repentina onda de consciência foi como uma sacudidela elétrica, que lhe pôs os nervos em alerta. Instintivamente, deslizou a mão direita pela pistola guardada no coldre, nas costas, enquanto tentava detetar qualquer movimento por entre os arbustos, que não deveria acontecer, algo que pudesse explicar o que lhe causara arrepios na nuca. Não via nada, mas os seus sentidos estavam a gritar, alerta. Havia alguma coisa ali, mesmo que não representasse perigo…

Ainda não acabara de formular o pensamento, quando os arbustos se mexeram ligeiramente e viu uma sombra negra. Uma nova onda de adrenalina invadiu-o e reagiu sem pensar, devido ao treino, deixando cair os sacos de plástico e precipitando-se para a esquerda, enquanto tirava a arma com a mão direita.

O corpo continuava retesado, quando viu um pequeno brilho e sentiu uma dor no peito.

Duas ideias distantes, mas claras, formaram-se na sua mente. «Silenciador». «Subsónico».

Morgan caiu no chão e o impacto foi quase tão forte como a dor no peito. Rodou com a pistola firmemente segura na mão, como se arma e mão constituíssem uma unidade de funcionamento. Uma parte do seu cérebro sabia que lhe tinham dado um tiro, mas a outra permanecia impiedosa, concentrada naquilo que o rodeava, decidida a fazer o que tivesse de fazer. Disparou para onde vira o brilho e o som rasgou a noite. No entanto, sabia muito bem que só um amador permaneceria no mesmo lugar, de modo que apontou para um alvo afastado dos arbustos, seguindo a direção da sombra negra, que vira fugazmente. E voltou a disparar.

A sua mente desligou das ondas de dor que o atravessavam, porque só assim era capaz de funcionar. Os pensamentos sucediam-se a uma velocidade vertiginosa, analisando probabilidades e ângulos de tiro, selecionando a melhor opção, apesar de a adrenalina manter o corpo em movimento. Sem ter consciência de que se mexia, rodou para trás de uma boca de incêndios, sem se aperceber de onde estava, até chegar lá. Uma boca de incêndios não proporcionava muita proteção, mas era melhor do que nada.

A visão toldava-se, os objetos aproximavam-se rapidamente antes de recuar, como se uma corrente de ar invisível os empurrasse, para depois os puxar para trás. Na periferia, viu luzes que se acendiam, cortinas que se abriam, vizinhos que apareciam para ver o que raio estava a acontecer. Morgan pestanejou com força, tentando concentrar-se. Sim, o facto de haver mais luz permitiu-lhe ver uma figura masculina, um pouco apagada, sobre a qual disparou um terceiro tiro. Controlou o retrocesso e voltou a disparar. A forma escura caiu no chão, imóvel.

Meu Deus, doía-lhe muito o peito. Merda. Tinham-lhe lixado a tatuagem.

A visão voltou a ficar desfocada, mas Morgan aguentou, sem soltar a arma. «Abatido» não era o mesmo que «eliminado». Se se deixasse ir, se permitisse que a escuridão o abraçasse, o outro tipo poderia levantar-se e acabar o trabalho. A morte não era certa até se confirmar e, naquele momento, não estava em condições de confirmar nada.

As portas abriram-se e as pessoas gritaram. Os sons eram distorcidos e estranhamente longínquos, e as luzes apagavam-se. Através das sombras crescentes, achou que vira alguém ousado, que investigava o tiroteio. As palavras aproximavam-se, rodeavam-no, e algumas conseguiram abrir caminho na sua consciência.

— Shawn! Ficaste louco? — Ouviu-se uma voz feminina, zangada e aterrada, ao mesmo tempo.

— Chama a polícia — acrescentou um homem. Talvez Shawn, talvez outro.

— Já o fiz — anunciou uma terceira voz.

— O que raio está a acontecer?

Mais barulho, mais vozes que se juntavam ao grupo de pessoas que se aproximavam. Primeiro com cautela, depois mais confiantes, ao verem que não acontecia nada. Morgan tentou gritar, dizer alguma coisa, fazer barulho, mas o esforço superava-o. Sentia a respiração entrecortada, à medida que a dor aumentava, como uma maré prestes a invadi-lo.

«Talvez seja o fim para mim», pensou, demasiado cansado para se importar. Tentou controlar a respiração, porque já ouvira aquele som entrecortado e nunca pressagiava nada de bom. Não teria de resistir muito mais, meia hora no máximo, se um vizinho fosse capaz de reagir e o levasse para o hospital. Mas meia hora parecia ser uma eternidade, quando não sabia se conseguiria aguentar mais um minuto.

Morgan apoiou a cabeça no asfalto, sentindo a sua frescura. A mão esticada descansava na erva que rodeava a calçada e a sua mente encheu-se do pensamento distante, de como era agradável tocar na terra. Se chegara a sua hora, bom… Morrer era uma merda. Mas também não era mau de todo, considerando as maneiras horripilantes como poderia ter morrido.

Mas, por outro lado, sentia-se furioso porque, se morresse, não saberia quem o matara. E, sobretudo, porquê.

Alguém se inclinou sobre ele, uma forma imprecisa, a apagar-se diante dos seus olhos. Tinha de enviar um aviso a MacNamara e, com o seu último fôlego, balbuciou:

— Emboscada.

Capítulo 2

 

 

 

 

 

A consciência, ou falta dela, era algo curioso. Ia e vinha sem uma fronteira claramente delimitada, sem nenhuma direção. Às vezes, Morgan ascendia a uma consciência vaga e distante do «ser» e à mesma consciência vaga e distante do vazio. Depois, voltava a afundar-se e não havia mais nada até a maré da consciência voltar a empurrá-lo para a superfície, como um objeto à deriva no mar.

Uma vez, percebera muitas luzes brilhantes, calor e uma sensação de bem-estar, mas isso também desaparecera.

«Não estou morto.»

Esse foi o primeiro pensamento coerente de Morgan. Embora pontualmente se sentisse consciente de outras coisas. Dor, barulho, vozes indecifráveis, algumas que quase reconhecia, para além de um assobio intermitente, irritante. Nada daquilo significava algo para ele. Simplesmente, estava ali, ao longe, como um ponto de luz no topo de um poço profundo e escuro. Uma vez, no entanto, emergiu o suficiente para perceber o que significava sentir dor e ouvir barulho. Estava vivo.

O tempo carecia de sentido. As pessoas falavam, mas ele não conseguia responder, nem sequer quando era capaz de compreender as palavras. De todos os modos, essas pessoas pareciam saber. Mexiam-lhe no corpo, faziam-lhe coisas e explicavam-lhe o processo, passo a passo. Às vezes, não se importava, mas noutras sentia-se incomodado porque, bolas, algumas coisas não se faziam a um homem. Mas tudo parecia indiferente. Eles faziam o que tinham de fazer e ponto final.

Mexer-se não era uma opção. Não só parecia ser incapaz, como nem sequer tinha interesse em tentar. Concentrava a maior parte da sua energia em existir, apenas. Os pulmões bombeavam o ar a um ritmo estranho, que não era capaz de controlar, tinha um tubo enfiado na garganta e não conseguia evitar pensar que viver talvez não fosse assim tão boa ideia.

Contudo, morrer também fugia ao seu controlo. Se pudesse escolher, talvez tivesse permanecido na escuridão porque, cada vez que vinha à superfície, a dor era como «o pior filho da mãe», que o atingia com facilidade. Se pudesse, teria dado um pontapé no traseiro daquele canalha, que acabava sempre por ganhar todas as batalhas. Por vezes, a dor era mais distante, como se um manto de lã o protegesse, apesar de nunca o abandonar por completo. Por fim, com muito esforço, chegou à conclusão de que «esse manto de lã» eram as drogas… Provavelmente.

A sua única arma contra a dor era a teimosia. Não gostava de perder. Odiava. Um vestígio de vontade, de pura teimosia, fê-lo concentrar-se na dor. Era o seu objetivo, o seu adversário e continuava a regressar para ter mais. Talvez conseguisse derrubá-lo, mas, por Deus, não conseguiria derrotá-lo. Mesmo nos momentos em que só queria gritar de pura agonia, se fosse capaz de gritar, lutava para se manter consciente, lutava por cada ligeira melhoria.

A um nível muito básico, lutar era o que sabia fazer, era o que era, de modo que lutava contra tudo. Não só para se manter consciente, mas também contra o tubo na garganta que o impedia de falar, contra as agulhas que tinha nos braços e que o impediam, pelo menos na sua cabeça, de se mexer. Nenhum deles tinha nome, seguravam-no para que não pudesse mexer um único músculo, nem mesmo a cabeça.

A raiva surgiu, para fazer companhia à dor. Estava tão furioso que receava explodir. E o que piorava tudo ainda mais era que não tinha maneira de expressar essa raiva, por se sentir tão indefeso, enquanto cada centímetro do seu corpo, cada um dos seus instintos, era alvo de abuso.

Passado algum tempo, cansado, adormecia ou perdia-se novamente na inconsciência. Talvez ambas as coisas. Certamente, era incapaz de distinguir uma da outra.

De repente, um dia, abriu os olhos e focou o olhar, focou-o realmente na mulher de meia-idade que, de pé, junto dele, manipulava os tubos que saíam de uns saquinhos de plástico, pendurados num suporte metálico. E, pela primeira vez, Morgan pensou em «hospital». As torturas a que o tinham submetido eram, na verdade, cuidados. No entanto, os seus sentimentos não mudaram. Concentrou toda a animosidade que sentia no olhar e observou a mulher.

— Ena, olá! — Cumprimentou ela, exibindo um sorriso. — Como se sente hoje?

Se pudesse falar, ter-lhe-ia explicado com todos os detalhes como estava. E o seu vocabulário não teria sido muito seleto.

A mulher parecia saber exatamente o que pensava, porque o seu sorriso se tornou mais rasgado, enquanto lhe dava uma palmadinha no ombro.

— Depressa lhe tiraremos o tubo e, então, poderá contar-nos tudo.

Morgan tentou contar-lhe, naquele preciso momento, mas só conseguiu emitir uns gemidos fracos antes de, vergonhosamente, adormecer outra vez.

Quando acordou, soube imediatamente onde se encontrava… Mais ou menos. Mexendo apenas os olhos, porque não conseguia mexer mais nada, tomou nota daquilo que o rodeava. Tinha a visão desfocada, mas estava treinado para observar, analisar e, depois de um tempo interminável, chegou à conclusão de que, embora estivesse deitado numa cama de hospital, com as proteções levantadas em ambos os lados, era mais do que evidente que se encontrava em algum lugar, mas, certamente, não num hospital. Para começar, o quarto estava pintado de azul, as janelas estavam tapadas com cortinas e a porta era normal, não como as portas grandes e robustas dos hospitais. Tinha a sensação de ser um quarto normal, cheio de equipamento médico, disposto de forma a caber naquele espaço.

E havia as enfermeiras, malditos fossem os seus traseiros sádicos, que o assistiam. Por vezes, usavam uniformes coloridos, outras vezes, não. A mulher de meia-idade que se encontrava ali, quando acordara, usava sempre calças de ganga, ténis e uma camisola, como se acabasse de chegar de uma quinta. Por vezes, quando a porta se abria, tinha tempo de ver a presença de alguém armado, no corredor, mas ninguém que reconhecesse.

As suas ideias não estavam claras e as lembranças ainda menos. Tinha uma lembrança muito imprecisa de Axel MacNamara de pé, junto da cama, algumas vezes, quando acordara, que lhe fazia perguntas, insistentemente. Claro que MacNamara perguntava as coisas com muita insistência, sempre. Morgan só fora capaz de pestanejar algumas vezes e nem sabia porque pestanejava. De modo que, ao fim de alguns minutos, o chefe costumava render-se e ir-se embora.

No entanto, mesmo no meio da neblina dos sedativos e do trauma, a raiva continuava a bulir com força, dentro dele. Nos momentos em que era capaz de pensar, recordava o que acontecera, embora a emboscada continuasse a misturar-se com o que se seguira e, às vezes, sentisse vontade de disparar contra as enfermeiras, se tivesse uma arma à mão. Não podia tirar conclusões sobre as razões do ataque, mas sabia que deviam ser muitas e más. E por muito confuso e indefeso que se sentisse, continuava firmemente decidido a encontrar o responsável por tudo aquilo, a descobrir o seu objetivo. Alguém mais ingénuo e crédulo poderia ter pensado que o objetivo era, simplesmente, matá-lo. Mas Morgan deixara de ser ingénuo quando fizera três anos e «crédulo» não fazia parte da sua descrição como pessoa. Matá-lo devia fazer parte de um plano maior. A questão era saber que plano era esse e quem estava por detrás de tudo aquilo.

Fora capaz de chegar a essa conclusão, mas não conseguia comunicar suficientemente bem para a transmitir. O facto de estar indefeso era tão mortificante, que teria destruído o quarto inteiro se conseguisse mexer-se. No entanto, pelo modo como o tinham prendido à cama, era incapaz de tocar na campainha para chamar a enfermeira, no caso de que querer chamá-la, o que não era o caso, porque cada vez que aparecia fazia coisas de que não gostava.

Um dia, no entanto, ao acordar, sentiu-se como se tivesse virado uma esquina. Que esquina, não sabia, mas teve a clara sensação de que o seu corpo decidira viver. A equipa médica devia ter chegado à mesma conclusão sobre o seu estado de saúde pois, mais ou menos uma hora mais tarde, um médico, pelo menos pensou que aquele tipo era médico, apesar de poder ser uma pessoa tirada da rua, porque usava calças de ganga e uma camisa de flanela, entrou no quarto.

— Vamos tirar esse tubo da tua garganta — anunciou, alegremente. — Assim, poderás começar a comer e a beber. Estás pronto? Tosse, pois será mais fácil.

Morgan, que há um instante desejara com todas as suas forças que lhe tirassem aquele tubo da garganta, sentiu que o corpo inteiro se rebelava contra o que estava a acontecer. «Merda!» A única coisa que teria facilitado o processo seria estar inconsciente. Tinha a sensação de que os pulmões eram arrancados, juntamente com o tubo, enquanto lhe partiam o peito em dois. A visão ficou desfocada, tudo ficou negro e o corpo arqueou-se, involuntariamente. Se pudesse, teria dado uma sova àquele filho da mãe porque, se aquilo era «fácil», se fosse «difícil» teria morrido mais de um.

De repente, o tubo saiu e Morgan respirou pelos seus próprios meios, tremendo, encharcado em suor, mas pelo menos era capaz de falar… Mais ou menos. Pelo menos, na teoria. Sentia-se como se lhe tivessem esfregado a garganta com papel de lixa e a boca não estava muito melhor. Fez três tentativas para pronunciar uma palavra rouca, quase inaudível.

— Água.

— Claro — uma mulher sorridente, de cabelo grisalho, serviu-lhe um copo de água e segurou uma palhinha junto da sua boca.

Morgan conseguiu fazer descer um pouco de água pela garganta irritada. Quase conseguia sentir a boca a absorver a humidade e bebeu mais dois goles, ansioso, antes de a mulher afastar o copo.

Recorrendo a todas as suas forças, tentou falar outra vez.

— Mais… drogas não.

Precisava de ter a mente limpa. Não sabia porquê, mas o instinto estava a enlouquecê-lo.

— Não te armes em macho, agora — replicou ela, sem parar de sorrir. — A dor causa stress no teu corpo, que atrasa a recuperação. Ajustaremos a dose todos os dias. Está bem?

O que significava que iam dar-lhe mais drogas, mesmo que não quisesse. Morgan estava bastante certo de que, num hospital, não teriam ignorado os seus desejos. Mas era evidente que não se encontrava num hospital. Iam fazer o que fosse necessário e teria de aguentar. De repente, adormeceu novamente. Malditas drogas.

Quando voltou a acordar, Axel MacNamara estava junto dele.

A visita devia ter sido programada para coincidir com o fim dos efeitos daquilo que lhe tinham injetado nas veias, porque se sentia minimamente concentrado. Sim, MacNamara era daqueles que pensavam em coisas como aquela. Aquele canalha planeava tudo, certamente, até mesmo as vezes que mastigava a comida.

Morgan não diria que tinha a mente limpa, mas, pelo menos, a névoa era menos densa. O suficiente para ter consciência de uma vaga sensação de medo, que era incapaz de analisar ou identificar. Estava treinado para ignorar a existência do medo, conformando-se com uma sensação de alarme que ativava a sua reação para lutar ou fugir. No entanto, naquele momento, tinha medo, embora não soubesse dizer de quê. Talvez receasse que aquela neblina, a sensação de estar desligado de tudo, menos da dor, fosse permanente. Talvez tivesse medo de que as suas lesões fossem demasiado importantes para sarar por completo. Talvez receasse a sua nova realidade. Mas não, sabia que melhorara, embora passar de «quase morto» para «feito num oito» não fosse um grande progresso.

— Olá — disse a MacNamara, enquanto tentava disfarçar a sua inquietação.

Imediatamente, franziu o sobrolho, pois a sua voz parecia frouxa, pastosa. Virou-se para alcançar a chávena que estava na mesa de cabeceira, junto da cama, e descobriu que continuava preso e que a perda do efeito dos analgésicos o obrigava a lutar contra o seu corpo, devastado e remendado, que protestava a cada movimento. A dor e a impotência eram insuportáveis.

— Tira-me estas… Malditas correias — conseguiu pedir, num tom rouco, a que imprimiu uma certa força devido à raiva.

— Vais voltar a arrancar as vias de acesso? — Axel não mexeu um único músculo.

A ideia era tentadora, mas Morgan sabia que, se o fizesse, tudo recomeçaria.

— Não — resmungou.

MacNamara soltou-o e carregou no botão que fazia subir a parte superior da cama. Morgan sentiu-se um pouco enjoado durante alguns segundos, mas depois de respirar fundo, repetidamente, esforçou-se para não se comportar como uma menina e desmaiar. Não seria capaz de viver com isso.

— Estás suficientemente bem para responder a algumas perguntas? — perguntou Axel, com a sua brusquidão habitual. Nunca perdia tempo com elogios, nem sequer para perguntar como se sentia.

Morgan olhou para ele, o mais furioso que pôde através da sua visão desfocada, basicamente, porque estava com um humor de cão.

— Pergunta — replicou, enquanto estendia com sucesso uma mão para a chávena que, segundo esperava, continha um pouco de água.

O movimento foi agónico, era como se alguém estivesse a esfaquear-lhe o peito. Cerrou os dentes e continuou a estender o braço. Por um lado, porque não estava disposto a render-se à dor e, por outro, porque tinha muita vontade de beber água.

Qualquer outro teria aproximado a chávena, mas não MacNamara. No entanto, naquele momento, Morgan apreciou a sua falta de amabilidade. Queria fazê-lo sozinho. Fechando a mão trémula em torno da chávena, levantou-a. Continha alguns dedos de água, que bebeu de um só gole, antes de voltar a pousar a chávena na mesa de cabeceira. Depois, deixou-se cair na almofada, cansado, como se tivesse acabado de correr mais de trinta quilómetros.

— Lembras-te daquilo que aconteceu?

— Sim — talvez estivesse um pouco atordoado, mas não sofria de amnésia.

MacNamara aproximou uma cadeira da cama e sentou-se. Era um homem magro, de estatura média, embora ninguém confundisse a sua fraca figura com a falta de força. Era uma pessoa intensa, desumana, o tipo de homem de que as equipas de operações precisavam para as proteger.

— Sabes quem disparou?

— Não — Morgan respirou fundo. — E tu?

— Era da máfia russa.

Morgan pestanejou, perplexo, tão perturbado como era capaz de se sentir. A máfia russa? Que raios? Não tinha nada a ver com a máfia russa.

— Não me lixes!

— Não estou a lixar-te.

— Não conheço… Ninguém na máfia russa — tivera a intenção de dizer que não conhecia nenhum russo, mas recordou-se de que conhecia alguns, embora nenhum da máfia. — Como se chama?

— Albert Rykov. Chamava-se. Está morto.

«Ainda bem», pensou Morgan. Não costumava sentir muita piedade de pessoas que lhe davam tiros. Na verdade, não sentia a menor piedade.

— Nunca tinha ouvido falar dele. — De repente, teve uma ideia. — Poderia andar atrás de outra pessoa?

— Não — a resposta de Axel foi terminante. Não tinha a menor dúvida.

— E porque haveria de ser um alvo para a máfia russa? — Não tinha nenhum sentido.

Morgan esfregou o rosto com a mão e sentiu o bigode áspero, apesar de se recordar vagamente das enfermeiras a barbeá-lo, de vez em quando… Ou não. De repente, olhou para a mão, magra e pálida. Aquela não era a sua mão, embora soubesse que era, porque estava colada ao seu braço… Que também estava espantosamente magro. Durante alguns segundos, sentiu-se a desligar e teve de se esforçar para manter os seus pensamentos. Do que estavam a falar? Ah, sim, os russos.

— Não és. O Rykov estava associado à máfia, mas isto tem todo o aspeto de ser um golpe independente. Alguém de fora encomendou o trabalho.

Nesse caso, as possibilidades multiplicavam-se, porque Morgan continuava a ser incapaz de pensar em alguém que quisesse vê-lo morto. O que, na teoria, tornava suspeita toda a população mundial.

— Conta-me tudo o que aconteceu desde que regressaste aos Estados Unidos da América — pediu Axel, enquanto se recostava na cadeira e cruzava os braços.

— Entreguei o meu relatório — Morgan supôs que o chefe já sabia, visto que teria toda a papelada em seu poder. — Comi qualquer coisa no McDonald’s, fui para casa, tomei banho e deitei-me. Dormi vinte e quatro horas seguidas. Depois, levantei-me, corri alguns quilómetros à noite, voltei para casa e voltei a dormir — as frases simples eram interrompidas por pausas, para respirar.

— Aconteceu alguma coisa no McDonald’s? Ou enquanto corrias? Falaste com alguém?

— Não, não, com ninguém, para além da empregada da caixa, que me entregou o pedido pela janela do drive-in.

— Reconheceste a empregada?

— Não, era uma adolescente.

— Viste alguém dentro do restaurante?

— Não — disso, tinha a certeza, porque se recordou de se ter sentido inquieto com o campo de visão reduzido.

Depois de uma missão, demorava sempre um pouco a desligar o «modo de combate».

— E depois?

Morgan suspirou ruidosamente e tentou reunir a pouca energia que tinha, embora também não tivesse tido muita desde o começo. Sentia-se tão fraco que não reconhecia o seu próprio corpo. E isso perturbava-o, pois não sabia se o poderia atribuir às drogas.

— Quando acordei, apetecia-me ir à pesca. Liguei ao Kodak, mas ele estava ocupado. De modo que fui sozinho.

Axel assentiu e Morgan supôs que já estaria ao corrente de tudo isso. Assim como teria o relatório.

— Falaste com alguém?

— Com a congressista Kingsley e o marido. Estavam no rio.

— Havia alguém com eles?

— Não, estavam sozinhos.

— Mais alguém?

— Não falei com ninguém — Morgan tentou pensar. — Só com o Brawley, o dono do porto. Cumprimentámo-nos.

— E…? — Axel era mestre a ler expressões.

Até ouvir o «e», Morgan não se apercebera de que existia um «e». Tentou respirar fundo, mas desistiu quando a dor no peito se tornou insuportável.

— Pode ser um acaso, mas, depois de me cumprimentar, fez uma chamada.

— Quanto tempo depois?

— Imediatamente.

— De um telemóvel?

Se Brawley tivesse usado um telemóvel, Axel poderia obter informação sobre possíveis recetores da chamada, através das torres de transmissão.

— Não — Morgan viu claramente na sua mente o telefone fixo antiquado, que Brawley usara. — Um fixo, com cabo.

— Merda! — a exclamação de Axel estava carregada de frustração. Não seria impossível obter a informação, mas precisaria de uma ordem judicial. A tecnologia tê-los-ia ajudado a ignorar esse procedimento, se tivesse ligado de um telemóvel.

Mas, independentemente da chamada, Morgan não conseguia pensar em nenhuma maneira de Brawley saber a sua morada. E, sobretudo, não conseguia pensar em nenhum motivo para lhe ter armado uma emboscada.

O esforço para permanecer sentado e responder às perguntas começava a ter o seu preço. Já tinha muito pouca energia.

— Não há nenhum motivo… — murmurou, enquanto deixava cair a cabeça para trás.

Os olhos fecharam-se automaticamente, mas tentou abri-los.

— O quê? — perguntou Axel.

— Não há nenhum motivo para o Brawley fazer uma coisa dessas — Morgan conseguiu acabar a frase, depois de reconstruir laboriosamente os seus pensamentos. Pelo menos, achou que o fizera em voz alta.