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Uma viagem inesquecível

 

Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

Uma viagem inesquecível

Título original: The Leisure Seeker

© 2009, Michael Zadoorian

© 2018, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Publicado originalmente pela HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Tradutor: Ana Filipa Soares

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

Desenho da capa: Robin Bilardello

Imagem da capa: Andy Reynolds/Getty Images

 

I.S.B.N.: 978-84-9139-147-0

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Uma viagem inesquecível

Créditos

Sumário

Dedicatoria

Cita

Agradecimentos

Um

Dois

Três

Quatro

Cinco

Seis

Sete

Oito

Nove

Dez

 

 

 

 

 

 

Para o Norm e para a Rose

 

 

 

 

 

 

Qual é o mais bonito,

A estrela da manhã ou a vespertina?

O nascer ou o pôr do coração?

O momento em que encaramos o desconhecido,

E as sombras a serem consumidas pelo dia decidido,

Ou quando toda a paisagem das nossas vidas

Se estende atrás de nós, e locais familiares

Brilham ao longe, e memórias queridas

Ascendem como uma brisa suave, magnificando

Os objetos que contemplamos e que em breve terão de desaparecer?

HENRY WADSWORTH LONGFELLOW

 

 

 

 

O mundo está repleto de locais aos quais quero regressar.

FORD MADOX FORD

Agradecimentos

 

 

 

 

 

Um enorme obrigado, simpatia e respeito:

À minha mulher, Rita Simmons, que me ajudou durante o longo «período de silêncio», me dá força e sabedoria e que continua a tornar isto tão divertido.

À minha irmã, Susan Summerlee, pelo seu amor e apoio nos momentos mais difíceis.

A todos os meus amigos de Detroit que leram, me ajudaram, encorajaram e tiveram paciência para ouvir muitas queixas: Tim Teegarden, Keith McLenon, Jim Dudley, Irmão Andrew Brown, Nick Marine (risinho pomposo), Donna McGuire, Buck(eye) Eric Weltner, Holly Sorscher, Jim Potter, Russ Taylor, Jeff Edwards, Dave Michalak e Luis Resto.

À Lynn Peril e Roz Lessing por me ajudarem a manter-me são. Ao Dave Spala de T.C. pelo encorajamento e por nunca me dar ouvidos. À Cindy, Bill e Laura da C-E pela agradável «conversa de mãe». À DeAnn Ervin por estar sempre disponível para ajudar. Ao Tony Park pela intriga estrangeira na escrita. Ao John Roe pelas fantásticas fotografias apesar da aparente falta de jeito. Ao Randy Samuels pela verdade nua e crua. Ao Michael Lloyd, Barry Burdiak e Mark Mueller por se preocuparem tanto com as matriarcas.

À minha agente verdadeiramente extraordinária e talentosa, Sally van Haitsma, e à memória do seu pai, Ken van Haitsma. À minha editora, Jennifer Pooley, cujo incansável entusiasmo, devoção inesgotável a este livro e pontos de exclamação foram um consolo tão importantes para o estado de espírito deste escritor. Ao meu amigo e professor, Christopher Leland, um homem que nunca deixa de ajudar os seus alunos.

Mas acima de tudo, à memória dos meus pais, Rose Mary e Norman Zadoorian. As suas vidas continuam a ser uma inspiração para mim.

E por último, à Rota 66, às pessoas e aos locais, tanto reais como imaginados.

A estrada continua para sempre.

Um

 

MICHIGAN

 

 

 

 

 

Somos turistas.

Tomei consciência disso recentemente. Eu e o meu marido nunca fomos do tipo de viajar para expandir os horizontes. Somos mais do tipo de viajar por diversão — Weeki Wachee, Gatlinburg, South of the Border, lago George, Rock City, Wall Drug. Vimos porcos e cavalos nadadores, um palácio russo coberto de milho, raparigas a beber garrafas de dois litros de Pepsi-Cola debaixo de água, a ponte de Londres no meio do deserto, uma catatua a andar de bicicleta na corda bamba.

Acho que sempre o soubemos.

Esta nossa última viagem foi planeada de forma minuciosa à própria da hora, enfim, luxos de reformados. É uma viagem que estou grata por termos decidido fazer, apesar de toda a gente no-la ter proibido (médicos, filhos).

— Aconselho-a vivamente a não fazer qualquer tipo de viagem numa altura destas, Ella — disse o doutor Tomaszewski, um dos muitos médicos que estão atualmente a seguir-me, quando coloquei a hipótese de eu e o meu marido irmos fazer uma viagem. Quando mencionei casualmente a ideia de uma escapadela de fim de semana à minha filha, esta utilizou um tom que uma pessoa normalmente usaria para um cachorrinho desobediente.

(— Não!)

No entanto, tanto o John como eu estávamos a precisar de umas férias, mais do que alguma vez precisámos. Para além disso, os médicos só me querem por perto para me poderem submeter aos seus testes, tocarem-me com os seus utensílios gelados, à procura de manchas dentro do meu corpo. Já tiveram imenso tempo para isso. Já para os miúdos, embora estejam só preocupados com o nosso bem-estar, continua a ser um assunto que não lhes diz respeito. Lá porque têm uma procuração permanente isso não significa que têm total controlo sobre nós.

Uma pessoa pode perguntar a si própria: será que isto é uma boa ideia? Dois velhotes em apuros, uma com mais problemas de saúde do que um país do Terceiro Mundo, o outro de tal forma senil que já não sabe em que dia está, a fazerem uma viagem de carro pelo país?

Que estupidez. É claro que não é uma boa ideia.

Existe uma história sobre como Ambrose Bierce, cujos contos de terror eu devorava quando era miúda, decidiu que quando chegasse aos 70 iria simplesmente partir para o México. Eis como ele a escreveu: Naturalmente, é possível, se não mesmo provável, que eu não volte mais. Sendo estes países estranhos, em que coisas estranhas acontecem. Escreveu ainda: A viagem derrota a velhice, a doença e o cair das escadas que vão dar à cave. Estando eu familiarizada com as três situações, concordo plenamente com o velho Ambrose.

Resumindo, não tínhamos nada a perder. Por isso, decidi tomar uma atitude. A nossa pequena caravana Leisure Seeker estava equipada e preparada. Deixámo-la assim desde que nos reformámos. Por isso, depois de assegurar aos nossos filhos que fazer a viagem era uma ideia completamente fora de questão, raptei o meu marido, John, e fomos estrada fora, em direção à Disneyland. Era lá que costumávamos levar os miúdos, por isso preferimos essa ideia a outra qualquer. Afinal, nesta fase da vida somos mais crianças do que nunca. Especialmente o John.

A partir de Detroit, onde vivemos desde sempre, partimos pelo Estado fora em direção a oeste. Até agora tem sido uma viagem agradável, pacífica e estável. O fluxo de ar que passa pelo ventilador cria um delicado silvo de ruído branco, à medida que os quilómetros nos vão afastando das nossas vidas de velhos. A nossa mente começa a ficar mais desperta, as nossas dores a diminuir e as nossas preocupações a evaporarem-se, pelo menos, por algumas horas. O John ainda não disse uma única palavra, contudo, parece feliz por estar a conduzir. Deve estar num dos seus dias silenciosos. Ao fim de cerca de três horas, fazemos a nossa primeira paragem para passar a noite numa pequena cidade turística que se autointitula de «colónia de artistas». Assim que se entra na cidade, passa-se por uma paleta do tamanho de uma piscina de plástico para miúdos, encoberta por plantas de folha perene, em que cada mancha de tinta está pontilhada por lâmpadas coloridas que iluminam o seu tom de tinta correspondente. Mesmo ao lado, vê-se um sinal:

 

SAUGATUCK

 

Foi onde passámos a nossa lua-de-mel há já quase sessenta anos (na pensão da sra. Miller, que ardeu há já muito tempo).

Andámos no autocarro Greyhound. Essa foi a nossa lua-de-mel: passear pela zona oeste de Michigan. Podíamos não ter dinheiro para luxos maiores, mas mesmo assim, foi empolgante o suficiente para nós. (Ah, as vantagens de se ser facilmente impressionável).

Depois de darmos entrada no parque para caravanas, vamos dar uma volta a pé pela cidade, o máximo que eu conseguir, para desfrutarmos do pouco que ainda resta da tarde. Estou muito contente por estar aqui novamente com o meu marido ao fim de tantos anos. Passaram-se no mínimo trinta anos desde a última vez que aqui estivemos. Fico surpreendida por ver que a cidade não mudou muito — ainda aqui estão as inúmeras pastelarias, galerias de arte, gelatarias e lojas antigas. O parque é o local de que eu melhor me lembro. Muitos dos edifícios originais ainda se mantêm de pé e em bom estado. Surpreende-me que os líderes da cidade não tenham sentido a necessidade de demolir tudo para renovar a urbe. Talvez entendam que quando uma pessoa escolhe um sítio para passar férias, só quer regressar a um local que lhe pareça familiar, que lhe transmita a sensação de ser seu, mesmo que seja só por uns tempos.

Eu e o John sentamo-nos num banco no meio da rua principal, onde o ar do outono está impregnado com o cheiro a chocolate quente. Ficamos a observar as famílias que passam, de calções e sweatshirts, a comer cones de gelado, na conversa, a rirem num tom baixo e relaxado, enfim, vozes de quem está descontraído a passar férias.

— Isto é agradável — diz o John, as suas primeiras palavras desde que aqui chegámos. — Estamos em casa?

— Não, mas isto é agradável, sim — respondo-lhe eu.

O John pergunta-me sempre se estamos em casa em cada sítio por onde passamos. Especialmente de há mais ou menos um ano para cá, quando as coisas começaram a piorar. Os seus problemas de memória começaram para aí há quatro anos, embora tenha começado a dar sinais muito antes disso. Tem sido um processo gradual. (Os meus problemas de saúde começaram a surgir mais recentemente.) Já me disseram que temos sorte, mas não é isso que sinto. No caso da mente dele, primeiro começaram a desaparecer lentamente os cantos do quadro preto, depois as bordas, de seguida as bordas das bordas, criando um círculo que começou a diminuir cada vez mais, antes de começar por fim a desaparecer em si mesmo. Tudo o que restou foram pequenas manchas de memórias espalhadas aqui e ali pela sua mente, em locais onde a borracha não conseguiu concluir o seu trabalho, reminiscências que ouço vezes sem conta. De vez em quando, ele consegue aperceber-se de que se esqueceu de grande parte da nossa vida comum, no entanto, esses momentos têm vindo a tornar-se cada vez mais escassos nos últimos tempos. As raras ocasiões em que ele fica furioso com o seu esquecimento animam-me, pois isso significa que ele ainda está deste lado, comigo. Na maior parte do tempo, ele não está. Mas não faz mal! Fico eu a guardiã das memórias.

 

 

Durante a noite, para minha surpresa, o John consegue ter uma boa noite de sono, mas eu mal consigo pregar olho. Em vez disso, fico acordada a ler e a ver as conversas disparatadas que dão nos talk-shows de fim de noite na nossa pequena televisão a pilhas. A minha única companhia é a minha peruca que repousa no manequim de esferovite. Estamos as duas sob a fraca luz azul, a tentar ouvir o Jay Leno com os roncos sonoros do John e as suas adenoides a servirem de som de fundo. Não faz mal! De qualquer das formas não consigo dormir mais do que duas horas, e isso raramente me afeta. Ultimamente, parece que o dormir é um luxo que eu mal consigo pagar.

O John deixou a carteira, moedas e chaves na mesa tal como faz em casa. Pego nela, qual tijolo enorme, de pele já imensamente gasta do suor e abro-a. Deita um cheiro a musgo e faz um som pegajoso ao examiná-la. A carteira está um caos, exatamente como imagino a mente dele, coisas agarradas de forma aleatória, emaranhadas tal e qual vi nas brochuras nos consultórios dos médicos. Lá dentro encontro pedaços de papel manchados com gatafunhos ilegíveis, cartões-de-visita de pessoas há muito falecidas, uma chave sobressalente de um carro vendido há séculos, cartões da Aetna e da Medicare expirados junto de outros mais recentes. Aposto que não a limpa há cerca de uma década. Não sei como é que consegue sentar-se em cima disto. Não admira que lhe ande sempre a doer a coluna.

Enfio os dedos num dos compartimentos da carteira e encontro um pedaço de papel dobrado duas vezes. Ao contrário das outras coisas, esta não parece ter estado aqui há tanto tempo quanto isso. Desdobro-o e descubro que é uma fotografia retirada de um sítio qualquer. À primeira vista, parece ser uma fotografia de família, várias pessoas reunidas à frente de um edifício, contudo, nenhuma das pessoas me é familiar. Quando desdobro a margem esfarrapada no fundo do papel, vejo uma inscrição:

 

DOS AMIGOS DA PUBLISHERS CLEARING HOUSE!

 

Devo dizer que recebemos uma quantidade absurda de correio desta empresa. Foi numa determinada altura em que a doença do John começou a dar os seus primeiros sinais. Começou a ficar com uma fixação pela Publishers Clearing House. Estava sempre a participar nos seus sorteios, subscrevendo por acidente revistas de que não precisávamos: Teen People, Off-Roader, Modern Ferret. De repente, aqueles filhos da mãe estavam a enviar-nos três cartas por semana. Mais tarde, começou a ser cada vez mais difícil para o John perceber as instruções de entrada, por isso, começaram a acumular-se cartas abertas e meio lidas.

Demoro um pouco a perceber, mas lá consigo descobrir porque é que o John tem esta fotografia na carteira. Deve pensar que é uma fotografia da sua própria família! Começo a rir-me. Rio-me tão alto que receio acordá-lo. Rio-me até me virem as lágrimas aos olhos. Depois, rasgo a fotografia em milhares de pedacinhos.

Dois

 

INDIANA

 

 

 

 

 

Um começo de dia madrugador, pela escuridão da autoestrada intraestatal que vai de Indiana a Chicago, onde vamos entrar na Rota 66 no seu ponto de início oficial. Em circunstâncias normais, não nos aproximaríamos de uma grande cidade. São sítios perigosos para pessoas mais idosas. Ou se consegue acompanhar o ritmo, ou é-se simplesmente passado a ferro. (Fixem isto.) No entanto, é domingo de madrugada e o trânsito não podia estar mais calmo. Mas mesmo assim, camiões enormes passam rente a nós, barulhentos e a bufar, a 120, 130 km/h ou mais. Contudo, o John é inabalável.

Embora a mente dele esteja a falhar, continua a ser um excelente condutor. Vem-me à cabeça a imagem do Dustin Hoffman no filme Rain Man Encontro de Irmãos. Talvez por causa de todas as viagens de carro que fizemos no passado, ou do facto de ele conduzir desde os treze anos, a verdade é que acho que ele nunca se vai esquecer de como se faz. Seja como for, assim que se entra no ritmo das viagens de longa distância, é tudo uma questão de orientação (o meu trabalho — mulher dos mapas), evitar aquelas saídas bruscas e inesperadas e ter cuidado com o perigo que surge de repente no espelho.

Sem darmos por isso, o ar começa a ficar cinzento e pesado. Ao longe, encobertas por uma neblina poluída, vislumbram-se várias fábricas e empresas de fundição.

O John torce o nariz, vira-se para mim e diz:

— Peidaste-te?

— Não! — respondo-lhe eu. — Estamos é a passar por Gary.