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Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

Laços de familia

Título original: Family Tree

© 2016, Susan Wiggs

© 2018, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Publicado originalmente pela HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Tradutor: Fátima Tomás da Silva

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

Desenho da capa: Alan Dingman

Imagem da capa: Shutterstock

 

ISBN: 978-84-9139-278-1

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Créditos

Dedicatória

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Capítulo 26

Capítulo 27

Epílogo

Agradecimentos

Se gostou deste livro…

 

 

 

 

 

 

Em memória do meu pai, Nick Klist.

Com profunda gratidão por todo o amor, coragem, gargalhadas e sabedoria de toda uma vida. Vive nos corações das pessoas que o amaram.

Capítulo 1

 

 

Agora

 

 

 

 

 

— Não consigo acreditar que estamos a discutir por causa de uma búfala — queixou-se Annie Rush, enquanto compunha o colarinho da camisa do marido.

— Então, vamos parar de discutir. Já está resolvido. — Ele sentou-se e calçou as botas de cobói, as mesmas botas caras que lhe oferecera no Natal passado. Mesmo assim, nunca se arrependera de as ter comprado, pois assentavam-lhe muito bem.

— Não está resolvido. Ainda podemos cancelá-lo. Já esticámos o orçamento do programa ao limite. Além disso, uma búfala? Vão ser quase setecentos quilos de teimosia.

— Vá lá, querida… — Martin levantou-se. Os seus olhos azuis brilhavam como o sol a refletir-se numa piscina. — Trabalhar com um animal no programa será uma aventura. Os espetadores vão adorar.

Suspirou, exasperada. Os casais discutiam pelas coisas mais estúpidas: Quem deixava a pasta de dentes destapada, o que era mais rápido, ir pela estrada Ventura ou por Golden State, quantas sílabas tinha a palavra «vieira», qual dos ajustes do termóstato era o perfeito, porque é que ele não podia limpar as varinhas fora da máquina de lavar loiça.

E, agora, aquilo. Búfala.

— Em que parte da descrição do meu trabalho diz que tenho de ser domadora de búfalos?

— A búfala é uma parte integral do programa. — Ele agarrou as chaves e a pasta e desceu. As suas botas ecoavam no chão de madeira nobre.

— Parece-me uma loucura esbanjar assim o orçamento da produção — queixou-se ela, seguindo-o. — É um programa de culinária, não O Reino Selvagem.

— É O Ingrediente Chave e, se o ingrediente desta semana é a mozarela, precisamos de uma búfala.

Annie cerrou os dentes para se conter e não prolongar a discussão. Recordou-se que, por trás daquela discussão, estava o seu casamento. Até com os seus quase setecentos quilos de peso, o assunto da búfala era pouco importante e o que importava era as coisas grandes: A facilidade com que Martin picava alho e cebolinho enquanto cozinhava para ela. A sua dedicação ao programa que tinham criado juntos. A sessão apaixonada de sexo no duche que tinham tido na noite anterior.

— Vai ser fantástico. Confia em mim. — Abraçou-a pela cintura e roubou-lhe um beijo.

Annie acariciou-lhe a face. Acabara de se barbear. A última coisa que queria era discutir com Martin. Ele não tinha consciência de como aquela ideia era estranha. Sempre achara que a beleza do programa se baseava na sua extravagância. Ao mesmo tempo, estava convencida de que o sucesso do programa se devia à sua autenticidade. A isso e a um chef com grande talento cujo físico e carisma enfeitiçavam a audiência durante uma hora por semana.

— Confio em ti — sussurrou, pondo-se em bicos de pés para o beijar.

Era a estrela do programa, ao fim e ao cabo. Gozava da atenção do produtor executivo e costumava levar a sua avante. Deixava os detalhes para Annie: A sua esposa, a sua sócia e a sua produtora. Sobre ela, recaía a responsabilidade de fazer com que tudo funcionasse.

Ainda a pensar na discussão, apoiou as mãos no parapeito da janela com vista para o jardim da sua casa. Tinha um milhão de coisas para fazer e a primeira seria uma entrevista para a revista People, um artigo sobre como era o programa nos bastidores.

Um empregado estava a preparar-se para subir para um andaime e para começar a limpar os vidros. Martin passou à frente dele a caminho da garagem e parou para dizer qualquer coisa ao homem, que sorriu e assentiu. Martin, o Encantador.

Um instante depois, o seu BMW cinzento descapotável saía a toda a velocidade da garagem. Não sabia porque tinha tanta pressa. Ainda faltavam horas para o ensaio de segunda-feira.

Suspirou e virou-se, tentando afastar o resíduo emocional deixado pela discussão. A avó costumava dizer que uma discussão nunca girava em torno do assunto sobre o qual se discutia. A búfala não era a questão. Todas as discussões giravam em torno do poder. Quem o tinha. Quem o queria. Quem se renderia. Quem sairia a ganhar.

No seu caso, não havia nenhum mistério. Annie rendia-se e Martin saía a ganhar. As coisas funcionavam assim. Porque o permitia? Ou porque gostava de jogar em equipa? Sim, eram uma equipa. Uma equipa de sucesso com o seu próprio programa numa cadeia emergente. Cedia sempre pelo bem dos dois. Pelo bem do seu casamento.

Outra das coisas que a avó costumava dizer era algo que Annie gravara no coração: «Lembra-te do amor. Quando vierem momentos difíceis e começares a questionar porque te casaste, lembra-te do amor.»

Por sorte para Annie, isso nunca era difícil. Martin era um bom partido. Tinha o tipo de beleza que fazia com que as mulheres parassem para olhar para ele e o seu encanto não ficava limitado ao programa. Sabia como fazê-la rir-se. Quando tinham uma ideia juntos, pegava nela ao colo e levava-a a dançar pela cozinha. Quando lhe falava da família que teriam algum dia, dos seus bebés, ela derretia-se. Era o marido, o sócio, um elemento insubstituível na sua vida. «Bom, já está. Não importa!», pensou.

Viu as horas e, ao verificar o correio do trabalho… Na verdade, todo o seu correio era sobre trabalho… Descobriu que a plataforma elevatória que tinham alugado para instalar novos sistemas de iluminação no set tinha problemas mecânicos.

«Incrível. Mais uma coisa com que me preocupar.»

O telemóvel tocou e o ecrã iluminou-se com a imagem de um gato.

— Melissa — disse, ativando o altifalante. — O que se passa?

— Só estava a ligar para saber como estavas — redarguiu Melissa. Ultimamente, ligava muitas vezes para saber como estava. — Viste a mensagem sobre a vaca?

— Búfala — corrigiu. — E sim. Além disso, chegou-me um aviso sobre uma plataforma elevatória que não funciona. E a CJ da revista People vem hoje, portanto, suponho que chegarei atrasada. Muito atrasada. Diz a todos para não fazerem nada até depois do almoço. — Parou e mordeu o lábio. — Lamento. Esta manhã, estou de mau humor. Esqueci-me de tomar o pequeno-almoço.

— Vai comer qualquer coisa. Bom, linda — disse Melissa, num tom alegre —, tenho de desligar.

Annie voltou para o computador para verificar novamente a hora da reunião com a jornalista. CJ Morris estava a fazer um artigo de fundo sobre o programa, não só sobre as suas estrelas, Martin Harlow e Melissa Judd, mas sobre toda a produção, desde a sua estreia como um pequeno programa de televisão por cabo até ao sucesso em que se transformara. CJ já entrevistara Martin e Melissa e, naquela manhã, iria visitá-la, a criadora do programa. Não era um tema habitual para um artigo de revista, já que os leitores ansiavam ver mexericos e fotografias das estrelas, portanto, Annie esperava aproveitar aquela oportunidade ao máximo.

Enquanto esperava pela jornalista, fez o que um produtor fazia: Usar cada minuto livre para tratar de outros assuntos. Leu o contrato de aluguer da plataforma elevatória para encontrar um número para onde ligar. Martin e ela também tinham discutido por isso. O custo da plataforma com a melhor qualificação de segurança era muito mais elevado do que o da hidráulica. Martin insistira em alugá-la, apesar das objeções da esposa e, como de costume, ela rendera-se e ele ganhara. Já que tinham gastado o orçamento na búfala, tivera de encontrar outra coisa. Agora, a plataforma hidráulica não funcionava bem e era ela que tinha de o resolver.

«Acabou-se», pensou. Voltou a pensar no pequeno-almoço e abriu o frigorífico. Iogurte búlgaro com xarope de ácer? Não, o seu estômago vazio não achava graça ao iogurte. E aqueles rabanetes que tanto lhe tinham chamado a atenção no mercado de agricultores já estavam velhos. Nem sequer lhe apetecia uma torrada. Ficaria sem tomar o pequeno-almoço. Cada coisa a seu tempo.

Foi à casa de banho e escovou o cabelo comprido e escuro, que alisara no dia anterior. Depois, examinou o batom e a manicura, ambos perfeitamente a condizer num tom vermelho cereja. A saia preta, as sandálias de plataforma e o top branco criavam um traje fresco e informal, uma boa escolha com a onda de calor que estavam a ter. Embora naquele dia não houvesse fotógrafo, queria estar perfeita para a entrevista.

O porteiro automático tocou e correu para o intercomunicador. Ena! A jornalista chegava cedo.

— Entrega para a Annie Rush — avisou alguém, do outro lado.

— Uma entrega? Eh… sim, claro, suba. — Carregou no botão para abrir a porta.

Um ramo enorme de flores tropicais exuberantes subia pelas escadas.

— Por favor, tenha cuidado com os degraus — avisou Annie, segurando a porta. — Pode deixá-las na bancada.

Lírios stargazer e narcisos brancos salpicaram a sala com o seu cheiro. O mosquitinho dava um toque de renda ao arranjo floral. A distribuidora pousou a jarra e afastou uma madeixa de cabelo da testa.

— Aproveite, senhora — replicou. Era jovem, com tatuagens e piercings em lugares pouco acertados. As olheiras que tinha indicavam que não dormira na noite anterior e uma nódoa negra já amarelada escurecia-lhe a face. Annie costumava reparar nesse tipo de coisas.

— Tudo bem? — perguntou.

— Sim, claro. — A rapariga apontou para o ramo com a cabeça. — Parece que alguém está muito contente consigo.

Annie deu-lhe uma garrafa de água do frigorífico e uma nota de vinte dólares.

— Cuida-te.

— Fá-lo-ei. — A rapariga saiu e desceu as escadas a correr.

Annie tirou o pequeno envelope que havia entre as flores. Flores Expresso Rosa. O cartão continha uma mensagem simples: «Lamento muito. Querida, vamos falar disto.»

Ai, Martin! Era um gesto típico dele: Generoso, excessivo… irresistível. Certamente, fizera a encomenda a caminho do trabalho. De repente, o amor invadiu-a e o seu aborrecimento dissipou-se. A mensagem era exatamente o que precisava, mas, então, sentiu uma pontada inquietante de culpa. Às vezes, preocupava-se com não acreditar o suficiente nele, com não confiar nas decisões que tomava. Talvez, afinal de contas, tivesse razão em relação à búfala e acabasse por ser um dos seus episódios mais populares.

A campainha voltou a tocar, anunciando a chegada de CJ.

Ao abrir a porta, encontrou um muro de calor intenso.

— Entra antes de derreteres.

— Obrigada. Este tempo é uma loucura. Ouvi na rádio que, hoje, vamos voltar a chegar aos quarenta graus e tão cedo este ano…

Annie afastou-se e convidou-a a entrar. Quisera que a casa estivesse perfeita e alegrava-se por Martin lhe ter enviado aquelas flores frescas que lhe davam um toque de elegância.

— Fica à vontade. Queres alguma coisa para beber? Tenho um jarro de chá gelado no frigorífico.

— Hum, parece-me muito bem. É sem cafeína? Deixei a cafeína. E os taninos também me fazem mal. É sem taninos?

— Não, lamento. — Por muito tempo que passasse a viver ali, nunca se habituaria à quantidade de extravagâncias dietéticas dos californianos do sul.

— Então, água. Se for engarrafada. Cheguei cedo — comentou, num tom de desculpa. — Já que o trânsito é imprevisível, preferi vir mais cedo.

— Não há problema — tranquilizou-a Annie. — A minha avó dizia sempre que, se não conseguirmos chegar a tempo, devemos chegar mais cedo. — Foi ao frigorífico enquanto a jornalista pousava as coisas e se sentava no sofá.

Pelo menos, poderia impressioná-la com a água. Um patrocinador enviara-lhe amostras da sua água mineral de catorze dólares cada garrafa, extraída de um aquífero nos Andes situado a quatrocentos e cinquenta metros abaixo da terra e engarrafada antes de entrar em contacto com o ar.

— Que cozinha tão fantástica! — comentou CJ, olhando ao seu redor.

— Obrigada. É daqui que saem todas as delícias — redarguiu Annie, passando-lhe uma garrafa de água fresca.

— Imagino. Bom, a tua avó escreveu este livro, não foi? — inquiriu CJ, enquanto observava um livro de culinária antigo que estava em cima da mesa de café. Depois, ativou o gravador do telemóvel e deixou-o na mesa. — Vamos falar dela.

Annie adorava falar da avó. Sentia a falta dela diariamente, mas as suas lembranças mantinham-na viva no seu coração.

— A avó publicou-o nos anos sessenta. Chamava-se Anastasia Carnaby Rush. O meu avô chamava-lhe «Sugar» em honra à marca de xarope de ácer da família, «Sugar Rush».

— Adoro — disse CJ, olhando para o livro.

— Foi um best seller em Vermont e em Nova Inglaterra durante anos. Agora, já não se vende, mas posso enviar-te uma cópia digital.

— Incrível! Estudou para ser chef?

— Foi autodidata — respondeu Annie. — Era licenciada em Línguas e Literatura Inglesa, mas a culinária era o seu grande amor. — Mesmo naquele momento, muito depois de a avó ter morrido, conseguia imaginá-la na cozinha ensolarada da casa, feliz, fazendo refeições para a família todos os dias do ano. — A avó tinha um dom especial para a comida — continuou. — Costumava dizer que todas as receitas têm um ingrediente chave e que esse é o ingrediente que define o prato.

— Claro, então, é por isso que cada episódio do programa se concentra num ingrediente. Foi difícil vender a ideia à cadeia?

Annie riu-se.

— Não foi difícil. Vá lá… Estamos a falar do Martin Harlow. — Mostrou-lhe outro livro de culinária, o último de Martin. Na capa, havia uma fotografia dele em que parecia mais delicioso do que o bolo de amoras suculento com cobertura dourada que estava a fazer.

— Exato. É a combinação perfeita entre o cobói do Oeste Selvagem e o chef do Cordon Bleu. — CJ sorriu sem disfarçar a admiração que sentia por ele. Examinou atentamente as revistas que havia na mesa. US Weekly, TV Guide, Variety. O programa aparecera em todas durante os últimos seis meses. — São os últimos artigos?

— Sim. Podes ver o que quiseres. — O outro livro prezado de Annie estava ao lado. Um exemplar antigo de O Deus das Moscas, encadernado em tecido e protegido por um estojo. Era uma das três cópias que possuía. Esperava que a jornalista não lhe perguntasse por ele.

CJ estava concentrada noutras coisas: Um artigo de várias páginas da Entertainment Weekly em que Martin aparecia a cozinhar com as suas calças de ganga desbotadas características e o avental por cima de uma t-shirt branca e justa que deixava vislumbrar o seu corpo tonificado e esculpido. A coapresentadora, Melissa, estava ao seu lado. O seu aspeto impoluto era o contraponto perfeito para o estilo informal dele. O título perguntava: «Encontrámos o próximo Jamie Oliver?»

A comida como entretenimento. Era uma perspetiva em que Annie não pensara para O Ingrediente Chave, mas quem era ela para questionar o sucesso da audiência?

— Sem dúvida, conquistou o seu lugar no programa — replicou CJ. — Mas, hoje, vamos concentrar-nos em ti. Hoje, monopolizas a atenção.

Annie falou brevemente sobre a sua formação: Estudara cinema e televisão, com foco nas artes culinárias, num programa especial da Escola de Arte Tisch da Universidade de Nova Iorque. O que não mencionou foi o sacrifício que fizera para se mudar da Costa Este para Los Angeles. Isso fazia parte da sua história, não da história do programa.

— Quando te mudaste para a Costa Oeste?

— Parece-me que foi há uma eternidade, mas cheguei há dez anos.

— Recém-saída da universidade?

— Sim. Não esperava acabar em Los Angeles antes de a tinta ter secado no meu diploma, mas foi assim que aconteceu. Parece algo repentino, mas, para mim, não foi. Quando tinha seis anos, sabia que queria ter um programa sobre as artes culinárias. As primeiras lembranças que tenho são as da minha avó na cozinha a ver Ciao Italia na cadeia PBS. Costumava imaginar a avó como a Mary Ann Esposito, a ensinar o mundo a cozinhar. Adorava como explicava a comida, como a manipulava e se expressava através dela, como falava, escrevia sobre ela e como a partilhava. Eu fazia demonstrações de culinária para a minha avó e, depois, para qualquer pessoa que estivesse disposta a sentar-se para ver as minhas apresentações. Até me filmava a fazer programas de culinária. Passei as velhas cassetes VHS para formato digital para conservar todas essas lembranças. O Martin e eu queremos sentar-nos um dia destes para as ver.

— Que história tão fabulosa! Encontraste a tua paixão muito cedo.

A sua paixão nascera na cozinha da avó quando era demasiado pequena para ler ou escrever, mas não para sonhar.

— Presumia que todos adoravam a comida e continuo a pensar assim, portanto, surpreende-me sempre descobrir o contrário.

— Então, já gostavas de culinária antes mesmo de conheceres o Martin.

Outra vez Martin! O mundo presumia que o mais interessante que havia nela era Martin. Como deixara que isso acontecesse? E porquê?

— A verdade é que tudo começou com um breve documentário que fiz sobre o Martin quando ele tinha uma banca de comida em Manhattan.

— Aquele primeiro programa tornou-se viral, não foi? E, mesmo assim, continuas atrás das câmaras. Nunca quiseste estar à frente?

Annie manteve uma expressão neutra. É claro que queria, desejava-o todos os dias. Esse fora o seu sonho, mas o mundo da televisão comercial tinha outras ideias.

— Estou demasiado ocupada com a produção para pensar nisso — replicou.

— Nunca pensaste em ser coapresentadora? Estava a pensar no que acabaste de dizer sobre essas demonstrações de culinária…

Annie sabia onde CJ queria chegar. Os jornalistas sabiam como bisbilhotar em lugares privados e extrair informação. No entanto, CJ não encontraria nenhum segredo.

— O Leon Mackey, o produtor executivo e dono do programa, queria uma coapresentadora para evitar que o Martin se transformasse num busto falante. A verdade é que o Martin e eu fizemos alguns testes de câmara juntos. Mesmo antes de nos casarmos, queríamos formar uma equipa tanto à frente como atrás da câmara. Parecia-nos romântico e único, um modo de nos distinguirmos do resto dos programas.

— Exatamente — concordou CJ. — Mas não funcionou?

Annie recuperara a esperança quando Martin e ela tinham feito aqueles testes. Pensara que talvez a escolhessem. Mas não. O programa precisava de alguém com quem o público pudesse identificar-se melhor, tinham-lhe dito. Alguém mais refinado. O que não lhe tinham dito fora que o aspeto de Annie era demasiado exótico. A sua pele azeitonada e os seus caracóis escuros não condiziam com o arquétipo de rapariga loira e delicada que o produtor procurava.

— Não encaixas bem neste programa — dissera Leon. — Pareces a irmã mais nova da Jasmine Lockwood. Podias confundir os telespetadores.

Jasmine Lockwood apresentava um programa de grande popularidade sobre comida caseira na mesma cadeia. Annie não via a semelhança, mas rendera-se e antepusera o programa ao seu ego.

— Bom — começou a dizer, com um sorriso brilhante —, a julgar pelos índices de audiência, encontrámos a combinação apropriada para o programa.

CJ bebeu um gole de água e levantou a garrafa de lado para a observar.

— Quando é que a Melissa Judd entrou em cena?

Annie parou para pensar. Não podia dizer que fora quando Martin a conhecera nas aulas de ioga, embora tivesse sido assim. Naquele momento, Melissa trabalhava como apresentadora de um canal de vendas noturno. Na entrevista prévia à gravação, dissera, com um ar muito sério, que o seu físico sempre a prejudicara porque as pessoas só reparavam na sua beleza e não reconheciam o seu talento.

— O Martin e ela tinham essa química que é impossível de encontrar e de fabricar — disse Annie à jornalista —, portanto, soubemos que tínhamos de a contratar. — Não mencionou o trabalho que fora necessário para preparar a nova apresentadora. O tom de voz de Melissa era agudo e vulgar, uma voz de vendedora ambulante noturna desenhada para manter as pessoas acordadas. Annie fora a supervisora de descobrir os seus talentos ocultos. Trabalhara muito para criar a personagem de rapariga vivaz e tipicamente norte-americana. A seu favor, devia reconhecer que Melissa aprendera depressa. Martin e ela tinham-se transformado numa equipa dinâmica.

— Bom, não há dúvida de que criaste uma combinação vencedora — indicou CJ.

— Eh… obrigada. — Às vezes, quando observava as brincadeiras que os dois apresentadores faziam, brincadeiras que, normalmente, ela escrevia minuciosamente, desejava poder ser ela a estar à frente da câmara, não atrás. Mas a fórmula funcionava e, além disso, Melissa tinha um contrato blindado.

Annie sabia que devia reconduzir a conversa para o seu papel no programa, mas, de repente, voltou a pensar no pequeno-almoço. Pãezinhos ingleses. Com uma camada de sal marinho e manteiga de ácer.

— Fala-me do primeiro programa — sugeriu CJ. — Ontem à noite, voltei a vê-lo. O ingrediente chave era o xarope de ácer, que é perfeito, tendo em conta a tua história.

— Se com «perfeito» queres dizer «perto do desastre», então, sim — troçou Annie, com um sorriso. — A minha família passou várias gerações a dedicar-se ao negócio do xarope de ácer. — Apontou para um quadro na parede, uma paisagem que a mãe pintara de Rush Mountain, em Vermont. — Parecia-me um modo ideal de lançar o programa. A produção foi levada a cabo, literalmente, no meu jardim, na plantação da família Rush em Switchback, em Vermont.

Sentiu uma náusea e respirou fundo. Não soube se se sentia incomodada com a lembrança ou com o estômago vazio. Talvez a preocupasse que falasse de alguma coisa do seu passado. Ainda recordava aquela sensação de inquietação ao voltar para a pequena vila onde crescera, rodeada de todas as pessoas que a conheciam há anos.

Por sorte, o orçamento só lhes permitira passar lá setenta e duas horas e cada hora estivera cheia de atividades. Correra tudo mal. A neve derretera prematuramente, transformando os bosques invernais imaculados num pântano castanho de árvores nuas, unidas através dos tubos de plástico por onde a seiva fluía, como se uma medicação intravenosa estivesse a passar de uma para a outra. Na cabana de açúcar, onde devia ter acontecido a magia, houvera demasiado barulho e vapor para as câmaras conseguirem rodar. O irmão, Kyle, mostrara-se tão incomodado à frente da câmara que um dos redatores chegara a perguntar se era «parvo». Melissa estava constipada e Martin pronunciara o temido «eu bem te disse».

Naquele momento, Annie tivera a certeza de que a sua carreira, aquele programa com que tanto sonhara e que tanto perseguira, acabaria em lágrimas e se transformaria numa simples nota de rodapé da página de uma lista de programa falhados. Sentira-se devastada.

E fora então que Martin a salvara. De volta aos estúdios Century City, a equipa de pós-produção trabalhara ao máximo, cortando e juntando imagens, usando sequências de arquivo e voltando a filmar com material gerado por computador, concentrando-se no apresentador tremendamente sensual e inteligente, Martin Harlow, e na companheira bem treinada e incrivelmente jovial, Melissa Judd.

Quando se emitira a montagem final, Annie sentara-se na sala de edição numa cadeira giratória, sem se atrever a mexer-se. À beira de um ataque de pânico, sustivera a respiração até uma assistente lhe ter mostrado no seu telemóvel uma lista comprida de opiniões que estavam a publicar nas redes sociais. Os telespetadores estavam a adorar.

E também fascinara os críticos, que tinham gabado o amor pela comida que Martin irradiara enquanto, apoiado contra a parede da cabana de açúcar, provava um bolo molhado em xarope acabado de fazer. Tinham aplaudido também o entusiasmo encantador de Melissa ao preparar um prato e o modo sedutor como convidara os telespetadores a prová-lo.

Os índices de audiência eram decentes e as visualizações do trailer na Internet tinham aumentado a cada hora. As pessoas estavam a vê-lo e, o mais importante, estavam a partilhá-lo. O link viajava pelo éter digital, mexendo-se em redor do mundo. A cadeia encomendou mais treze episódios que se juntariam aos oito originais.

Annie olhara para Martin com lágrimas de alívio a cair-lhe pela cara. «Fizeste-o», pensara. «Salvaste o meu sonho.»

— A julgar pela expressão da tua cara, foi um momento emotivo — observou CJ.

Annie pestanejou, surpreendida consigo própria. O trabalho era o trabalho e não costumava ser sentimental com isso.

— Só estava a recordar como me senti aliviada por ter corrido tudo tão bem.

— Então, houve celebração?

— Claro. — Annie sorriu ao recordá-lo. — O Martin celebrou-o com um jantar à luz das velas… e um pedido de casamento.

— Ena! Meu Deus! És como a Cinderela.

Tinham-se casado há oito anos. Oito anos ocupados, produtivos e bem-sucedidos. Às vezes, quando se excediam com ideias caras como mergulhar à procura de ostras, ir procurar trufas ou ordenhar cabras nubianas, Annie questionava-se o que acontecera ao seu ingrediente chave, o conceito original do programa. A ideia inicial modesta ficara enterrada sob os episódios luxuosos que produzia ultimamente. Havia momentos em que se preocupava com o facto de o programa se ter afastado do seu sonho, cheio de teatrinhos e segmentos monopolizadores de atenção que não tinham nada a ver com a sua visão inicial.

O programa ganhara a sua vida própria, recordou-se, e isso podia ser bom. Com o seu saber acertado sobre a comida e uma gestão de contabilidade hábil, fazia-o funcionar todas as semanas.

— Tu és o ingrediente chave — costumava dizer Martin. — Tudo nasceu graças a ti. Da próxima vez que negociarmos um contrato, vamos pedir um lugar à frente da câmara para ti. Talvez até outro programa.

Ela não queria outro programa. Queria O Ingrediente Chave. Mas estava em Los Angeles há tempo suficiente para saber jogar aquele jogo e grande parte daquele jogo envolvia paciência e controlo de custos. O desafio era continuar a ser atraente e continuar a destacar-se sem sair do orçamento.

CJ escreveu umas notas rápidas no seu tablet. Annie tentou ser subtil quando olhou para o relógio, pensando no dia que tinha pela frente, com tantos recados a acumular-se como o tráfego aéreo no LAX.

Tinha de ir à casa de banho. Desculpou-se por um instante e foi à casa de banho do andar de cima.

E foi então que se apercebeu: Estava atrasada. Não para ir para o trabalho, porque já avisara que chegaria atrasada. Atrasara-se… No sentido de ter um atraso.

Ficou com falta de ar à frente da bancada, com as mãos apoiadas no azulejo frio.

Respirou muito lentamente e recordou-se que só tinham começado a tentar há algumas semanas. Ninguém engravidava tão depressa, pois não? Presumira que teriam tempo para se habituar à ideia de constituir uma família; tempo para pensar em procurar uma casa maior e para controlar a sua agenda. Para pararem de discutir.

Nem sequer tinha um calendário de ovulação. Não lera os livros típicos para grávidas. Não fora ao médico. Era demasiado cedo para tudo isso.

Mas talvez… Tirou o kit de baixo do lavatório. Ainda tinha um daquela vez em que fizera o teste à espera de não estar grávida. Se não descartasse a possibilidade, passaria o dia a pensar nisso. As instruções eram muito simples e seguiu-as à letra. Tremia-lhe a mão enquanto olhava para a pequena janelinha do resultado. Uma linha cor-de-rosa significava que não estava grávida. Duas linhas cor-de-rosa significavam que estava.

Pestanejou para se certificar de que estava a ver bem. Duas linhas cor-de-rosa.

Por um instante, tudo ficou paralisado, cristalizou-se como por arte de magia. O mundo desapareceu.

Susteve a respiração. Inclinou-se para a frente, olhou-se ao espelho e viu uma expressão que nunca vira nela. Foi um daqueles momentos a que a avó costumava chamar «momento chave». Um momento em que o tempo não passava sem mais nem menos, inadvertido e despercebido. O tipo de momento que fazia com que tudo parasse e que se afastava de todos os outros, apertando-se fortemente contra o seu coração, como uma flor seca entre as páginas de um livro muito prezado. Um momento feito de algo frágil e delicado que, mesmo assim, possuía o poder de durar para sempre.

Esse, conforme a avó costumava dizer, era um momento chave. Sentiu um nó na garganta… e uma sensação de entusiasmo tão pura que se esqueceu de respirar.

«É assim que começa», pensou.

Lavou as mãos e foi ao quarto buscar o telemóvel. Não, não queria ligar-lhe. Nunca atendia e não costumava verificar as mensagens de voz. Bom, de qualquer forma, não importava, pois era uma notícia demasiado importante para ser dada numa mensagem de voz ou de texto. Tinha de dar a notícia ao marido pessoalmente. Seria um presente do coração, uma surpresa tão doce como a que ela tivera naquele momento. Ele merecia viver o seu próprio momento chave. Queria vê-lo. Queria ver a cara dele quando lhe dissesse as palavras mágicas: «Estou grávida.»

Desceu as escadas a correr e encontrou a jornalista na sala.

— CJ, lamento muito. Surgiu uma coisa e tenho de ir ao estúdio agora. Podemos acabar noutro momento?

A cara da jornalista mudou.

— Só faltam algumas…

Não era o mais correto despedir-se assim de uma jornalista de uma revista importante, mas, naquele momento, não podia preocupar-se com isso. Estava emocionada, incapaz de se concentrar noutra coisa senão na grande notícia. Não conseguia suportar a ideia de a conter nem mais um segundo.

— Podes enviar-me o resto das perguntas por correio eletrónico? Juro-te que não to pediria se não fosse urgente.

— Estás bem?

Annie abanou-se com a mão. De repente, sentiu-se acalorada e com falta de ar. Parecia diferente? Já tinha esse brilho da gravidez? Que tolice! Só descobrira há dois minutos.

— Eh… Surgiu algo inesperado. Tenho de ir ao estúdio agora.

— Posso ajudar de alguma forma? Posso ir contigo e dar-te uma ajuda?

— És muito amável. — Não costumava ser tão imprudente com a imprensa. Uma das razões por que o programa tinha tanto sucesso era que a sua equipa de Relações Públicas e ela lhes tinham brindado cuidados profusos. Parou por um instante para pensar e, depois, disse: — Tenho uma grande ideia. Vamos encontrar-nos no Lucque para jantar, o Martin, tu e eu. Conhece o chef. Assim, poderemos acabar a entrevista enquanto comemos um jantar incrível.

CJ pegou na mala.

— O suborno ajuda-nos sempre. Ouvi dizer que há uma lista de espera de seis semanas para conseguir mesa.

— A menos que vás com o Martin Harlow. Direi à minha assistente para fazer a reserva e, depois, ligo-te.

Depois de se despedir apressadamente da jornalista, agarrou nas suas coisas — as chaves, o telemóvel, o portátil, o tablet, a carteira, a garrafa de água, as notas de produção — e guardou tudo na mala já carregada. Por um instante, imaginou a mala que usaria quando fosse uma mamã ocupada… Fraldas, chupetas e o que mais?

— Ai, meu Deus — sussurrou. — Ai, meu Deus. Não sei nada sobre bebés.

Correu para a porta e desceu as escadas do complexo residencial de Laurel Canyon. A sua casa era moderna, num lugar caro e que mal podiam pagar. O programa estava a ganhar impulso e Martin receberia um novo contrato em breve. Precisariam de uma casa maior. Com um quarto de bebé. Um quarto de bebé.

O calor embargou-a como se acabasse de abrir a porta de um forno. Mesmo para a primavera no sul da Califórnia, o calor era extremo. Avisavam as pessoas de que não deviam sair, deviam beber muita água e proteger-se do sol.

No caminho que conduzia à garagem, havia um tipo num andaime a limpar janelas. Annie ouviu um grito, mas não viu a raspadeira até ser demasiado tarde. Caiu na calçada a escassos centímetros dela.

— Ei! — gritou. — Deixou cair qualquer coisa.

— Lamento muito, senhora! — exclamou o homem, envergonhado. — Lamento muito. Escapou-me das mãos.

Apesar do calor, sentiu um calafrio. Agora, tinha de ter cuidado. Estava grávida. A ideia maravilhava-a e enchia-a de alegria, mas também lhe causava um certo medo.

Abriu o carro com o comando à distância e este cumprimentou-a, emitindo um pequeno bipe. Cinto de segurança, verificado. Espelho ajustado. Virou-se para trás durante alguns segundos e olhou para o banco. Estava cheio de sacos de supermercado reciclados, bandejas e tigelas vazias da última gravação, quando o ingrediente chave fora o açafrão. Algum dia, haveria uma cadeira para um bebé. Talvez pudessem chamar-lhe Saffron, como «açafrão» em inglês.

Obrigou-se a parar por um instante para assimilar tudo. Desligou o rádio. Fletiu e esticou as mãos em cima do volante. Depois, deu uma gargalhada forte e a sua voz subiu até um grito de pura felicidade. Imaginou a cara de Martin quando lhe contasse e sorriu enquanto subia a rampa. Conduziu com uma atenção extrema, sentindo-se já protetora do desconhecido minúsculo e invisível que tinha dentro dela. Uma fileira lenta de carros enchia a estrada, distorcida pelas ondas titilantes de calor. Dos lados, iam ficando as colinas castanhas do canhão. O smog pendia no ar como se anunciasse a chegada de um inverno nuclear.

Los Angeles era um lugar carente de encanto e extremamente edificado. Talvez essa fosse a razão por que se produzia tanto trabalho imaginativo ali. As colinas secas, o deserto de cimento e o céu apagado eram uma cortina de fundo neutra para criar ilusões. Através dos estúdios e dos sets, podiam levar as pessoas para lugares saídos do coração: Casinhas de campo junto de um lago, refúgios junto do mar, dias pertencentes a uma época passada, um outono em Nova Inglaterra, cabanas acolhedoras de inverno…

«Vamos ter de nos mudar», pensou. «Sob nenhum pretexto criaremos um filho onde se respira este ar tão asqueroso.»

Questionou-se se poderiam passar os verões em Vermont. De repente, a sua infância idílica encheu a sua mente com brilhos de nostalgia. Um engarrafamento em Switchback podia consistir no trator do vizinho à espera que passasse uma vaca que fugira da quinta. Lá, não havia ar poluído, só um ar limpo e fresco que trazia o cheiro agradável das montanhas e dos riachos de trutas. Era um paraíso virgem, um lugar que nunca chegara a apreciar até o ter deixado para trás.

Só sabia que estava grávida há cinco minutos e já estava a planear a vida do bebé. Porque estava pronta. Finalmente, iam ter uma família. Uma família. Para ela, era o mais importante do mundo. Sempre fora.

Pensou na discussão daquela manhã e, depois, recordou o ramo que Martin lhe enviara. Aquele momento mudaria tudo para os dois do melhor modo possível. As suas discussões estúpidas, que rebentavam como jorros de vapor de um géiser, de repente, desapareceram. Tinham mesmo discutido por causa de uma búfala? Por causa de uma plataforma elevatória? Porque perdera a tampa da pasta dos dentes?

O telemóvel tocou, indicando a chegada de uma mensagem de Tiger, a assistente.

«Problema importante com o andaime. Precisamos de ti já.»

«Lamento muito, Tiger», pensou Annie. «Depois.»

Depois de ter falado com Martin sobre o bebé. Um bebé. Isso eclipsava qualquer emergência no estúdio. Tudo o resto, a búfala, a plataforma elevatória, parecia pouco importante em comparação. Tudo o resto podia esperar.

Virou para o estacionamento do estúdio de Century City. O guarda, com um ar lacónico, indicou-lhe que passasse. Ela percorreu o labirinto de cimento cinzento-claro pintalgado por alguns oásis verdes de jardins de palmeiras. Virou por um beco de serviço e estacionou no lugar que lhe tinham atribuído, junto do BMW de Martin. Nunca gostara dos carros desportivos. Não lhe pareciam nada práticos dado o tipo de equipamento que tinham de usar para o programa. Agora que ia tornar-se pai, talvez Martin se livrasse do veículo de dois lugares.

A caminho da caravana de Martin, encontrou um grupo de turistas que, em cima dos Segways, procurava as suas estrelas favoritas. Uma mulher que parecia entusiasmada parou e tirou-lhe uma fotografia.

— Olá — cumprimentou —, não é a Jasmine Lockwood?

— Não — respondeu Annie, quase com um sorriso de desculpa.

— Oh, lamento muito. Parece-se com ela. De certeza que lho dizem muitas vezes.

Annie esboçou outro sorriso breve e esquivou-se do grupo. Não era a primeira vez que lhe diziam que se parecia com a diva da culinária e a verdade era que lhe parecia perturbador. Só se parecia com ela própria.

Martin, o rapaz de ouro, gostava de dizer que era a sua amada exótica e isso fazia-a sempre rir-se.

— Sou um rafeiro norte-americano de Vermont — costumava responder Annie. — Nem todos podemos ter pedigree.

O bebé parecer-se-ia com ela? Olhos castanhos e caracóis pretos alvoroçados? Ou seria como Martin, loiro e majestoso?

«Ai, meu Deus!», pensou, com pura alegria. «Um bebé.»

Uns cabos atravessavam o beco como serpentes, dirigindo-se para o estúdio. Havia fileiras de caravanas e trabalhadores com auriculares e pastas a correr por todo o lado. Viu a plataforma elevatória a erguer-se sobre a zona de trabalho. Estava totalmente estendida e os seus suportes cor de laranja formavam um ziguezague coroado pela plataforma. Operários com capacetes protetores e eletricistas com cabos enrolados por todo o lado formavam redemoinhos ao seu redor.

Viu Tiger, que correu para a cumprimentar.

— Está parada na posição mais alta.

Tiger parecia um personagem de manga, com o cabelo às cores e um colete com tons vivos. Além disso, tinha um dom estranho para fazer várias coisas ao mesmo tempo e fazê-las bem. Martin dizia que era uma maníaca, mas Annie agradecia a sua capacidade fantástica de concentração.

— Diz-lhes para a arranjarem — pediu Annie e continuou a andar.

Conseguiu ver o ar de surpresa de Tiger. Não era próprio dela ignorar um problema sem tentar resolvê-lo.

A caravana de Martin era a maior e também a mais equipada, com uma zona de maquilhagem, uma zona de vestiário, casa de banho e cozinha completas, uma zona de trabalho e outra de descanso. Quando se tinham apaixonado, com frequência, tinham ficado ali a trabalhar até tarde e tinham acabado por fazer amor na sala de descanso e por adormecer nos braços um do outro. Agora, a caravana estava fechada e as persianas estavam corridas para impedir que entrasse o calor abrasador. A máquina de ar condicionado estava muito quente.

Estava impaciente por entrar. Estaria fresco lá dentro. Parou, alisou a saia e endireitou a mala no ombro. Por um instante, pensou em pintar os lábios. Sim, queria estar bonita quando lhe dissesse que seria a mãe do seu filho. «Bom, o que importa?», pensou. Martin não se importava se tinha ou não os lábios pintados.

Rapidamente, marcou o código de acesso no teclado numérico e entrou.

A primeira coisa que sentiu foi o cheiro. Um cheiro saponáceo e floral. Tocava uma música pacóvia. Hanging by a Thread, uma canção que costumava cantar aos berros quando estava sozinha, pois uma boa canção de amor pacóvia fazia com que uma pessoa se sentisse ainda mais apaixonada.

Um fio fino de luz entrava por um espaço por baixo das persianas. Pôs os óculos de sol na cabeça e esperou que os olhos se adaptassem à luz. Começou a chamar Martin, mas viu algo que não encaixava ali.

Um telemóvel na zona de maquilhagem. Não era o de Martin, era o de Melissa. Reconheceu a capa cor-de-rosa brilhante.

E, então, chegou aquele momento. Aquela sensação traiçoeira de saber, mas não saber realmente. De não querer saber.

Sentiu falta de ar. Sentiu-se como se o coração tivesse parado, por muito impossível que fosse. Pela cabeça, passaram-lhe diferentes opções, pensamentos a correr de um lado para o outro como um rato num labirinto. Podia ir-se embora naquele momento, sair, recuar e…

E depois? Dar-lhes tempo para continuarem a fingir que aquilo não estava a acontecer?

Uma punhalada gélida de raiva encorajou-a a seguir em frente. Dirigiu-se para a zona de trabalho, separada da entrada por uma porta. Afastou-a de repente.

Ele estava sentado em cima dela e usava apenas as botas de cobói de quinhentos dólares.

— Ei! — gritou, chegando-se para trás como um cobói montado num potro selvagem. — Merda, foda-se! — Levantou-se e cobriu o sexo com uma colcha de franjas.

Melissa deu um grito abafado e tapou-se com uma almofada.

— Annie! Ai, Deus…

— A sério? — Annie mal reconhecia o som da sua própria voz. — A sério?

— Não é…

— O que parece, Martin? — inquiriu, com brusquidão. — Não. É exatamente o que parece. — Recuou. Tinha o coração acelerado e desejava afastar-se dele o mais depressa possível.

— Annie, espera. Querida, vamos falar.

Naquele momento, transformou-se num fantasma. Conseguia senti-lo. Foi ficando sem uma gota de cor até ficar transparente.

Seria capaz de o ver? Conseguiria ver através dela, diretamente no seu coração? Talvez tivesse passado muito tempo a ser um fantasma e só se tivesse apercebido naquele momento.

Uma sensação de traição invadiu-a. Sentiu-se bombardeada por muitas emoções. Incredulidade. Desilusão. Horror. Repugnância. Era como ter uma experiência fora do corpo. Ardia-lhe a pele. Ardia literalmente, como se fosse percorrida por uma descarga de eletricidade estática.

— Vou-me embora — disse. Tinha de ir vomitar em algum lugar.

— Podemos falar, por favor? — insistiu Martin.

— Achas mesmo que há alguma coisa para dizer?

Olhou para ambos por um momento. Contra toda a lógica, precisava de gravar aquela cena na sua memória.

E foi então que o momento mudou.

«É assim que acaba», pensou.

Porque era um daqueles momentos. Um momento chave. Um que lhe dava a volta e a levava numa nova direção.

«É assim que acaba.»

Martin e Melissa começaram a falar ao mesmo tempo, embora Annie só ouvisse uma espécie de balbuciar. Reparou numa imagem imprecisa e estranha, de um tom avermelhado. A cor da raiva.

Afastou-se, precisava de sair dali. Pôs a mão na mala e tirou as chaves. Tinha-as num chaveiro do Sugar Rush com a forma de uma folha de ácer.

Depois, virou-se, foi para a porta e saiu para o beco. Andava com passo decidido, o olhar fixo à sua frente e o queixo erguido.

Provavelmente, foi por isso que tropeçou num cabo. Caiu de joelhos e as chaves caíram ao chão com um tinido. A humilhação não cessava. Pegou nas chaves e olhou ao seu redor, rezando para que ninguém a tivesse visto.

Três pessoas correram para ela.

— Estás bem? Magoaste-te?

— Estou bem — respondeu, sacudindo o pó das mãos e dos seus joelhos arranhados. — A sério, não se preocupem.

O telemóvel, silenciado, vibrava dentro da mala. Atravessou a zona de construção. Os operários continuavam a lutar com a plataforma elevatória, tentando abrir a chave hidráulica. Não devia ter deixado que Martin a convencesse a comprar o modelo barato.

— Têm de a virar para o outro lado! — gritou aos operários.

— Senhora, nesta zona, temos de usar capacete — avisou um tipo, indicando que saísse dali.

— Já vou. Só digo que estão a tentar acionar a chave para o lado errado.

— O quê?

— A chave. Estão a rodá-la para o outro lado. — Que conversa tão estranha. Depois de descobrir que o marido estava na cama com outra, não devia ligar à mãe ou à melhor amiga a chorar?

— Sabe — disse ao homem —, para a esquerda afrouxa e para a direita aperta.

— O que está a dizer, senhora?

— No sentido contrário aos ponteiros do relógio — explicou, mexendo o chaveiro no ar para lhe demonstrar a direção.

— Annie! — Martin saiu a correr da caravana e correu para ela com uns bóxeres, o peito nu e as botas de cobói. — Volta!

Ela apertou o chaveiro com força e a folha de ácer cravou-se-lhe na pele.

O grupo de turistas dos Segways passou pelo fundo do beco.

— É o Martin Harlow! — gritou alguém.

— Nós adoramos o teu programa, Martin! — gritou outra rapariga do grupo. — Adoramos-te!

— Senhora, é assim que diz? — perguntou o operário, virando a chave com força.

Um som metálico forte ouviu-se de cima e a estrutura desabou completamente.